A união poliafetiva entre três homens em Bauru, no interior de São Paulo, foi reconhecida pela Justiça do estado. A decisão foi assinada no início de julho pela juíza Rossana Teresa Curioni Mergulhão. A magistrada validou o contrato particular que formaliza o relacionamento de Charles Trevisan, Kaio Alexandre dos Santos e Diego Trevisan.
Em 2018, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) proibiu o registro em cartório de uniões poliafetivas, ou seja, que tem três ou mais pessoas envolvidas. No entanto, esta norma não impede que essas relações sejam reconhecidas judicialmente. Por isso, de acordo com o g1, o trio conseguiu a validação. O contrato foi autenticado na Justiça e não em cartório. Esta segunda maneira de formalizar a relação segue vetada, conforme o CNJ.
Um contrato particular, como o feito pelo trisal, vale entre as partes que o assinaram e não tem data de validade. Ele foi fechado em uma comunhão universal de bens, mudança nos nomes civis e inúmeras regras de convivência éticas. Todavia, o documento não garante os mesmos direitos de uma união estável ou casamento, como inclusão de dependentes em planos de saúde ou seguro de vida. Para conseguir esses benefícios, eles teriam que recorrer à Justiça para provar que vivem juntos.
A história do trisal
Já casado com Diego, Charles conheceu Kaio pelas redes sociais em 2023. Na época, Kaio tinha 17 anos. Charles, então, decidiu se encontrar com o jovem junto com o marido. A partir daí, os três começaram o relacionamento. Quando o adolescente completou 18 anos, eles decidiram registrar a união em um cartório.
“Eu e Diego somos casados há quatro anos. Mas a história do trisal surgiu antes disso, porque me descobri uma pessoa poliamorosa quando estava com meu ex-marido e me apaixonei por outro cara. Mesmo estando com meu ex, queria estar também com o outro, porque eu amava os dois”, contou Charles ao g1.

Em dezembro do ano passado, Charles, que é autônomo e graduado em direito, emitiu um documento particular que comprovava o relacionamento. Ele autenticou esse contrato no cartório de Registro de Títulos e Documentos da cidade. A decisão judicial foi proferida no dia 8 de julho. Porém, uma semana antes Kaio decidiu dar um tempo na relação. Mesmo assim, ele manteve o registro da união poliafetiva.
“A sociedade recrimina muito e essa decisão serve para combater esse preconceito. Como sou do ramo do direito, sei que há uma resolução do CNJ que proíbe esse tipo de contrato. Mas imaginei que um documento com firma reconhecida, que mostra autenticidade, tem o mesmo efeito [do que um contrato de casamento] para nós”, afirmou Charles.
Validação
Apesar disso, o oficial de Justiça do cartório – que é responsável por conferir os registros – questionou a legalidade do ato. Por isso, foi solicitada a anulação do documento. Entre as justificativas estavam a falta de previsão legal e possíveis infrações administrativas. O cartório também instaurou um procedimento administrativo interno que resultou na aplicação de uma advertência por escrito à funcionária que autenticou o contrato particular.
O Ministério Público de São Paulo opinou no caso e concordou com o cartório, ou seja, também sugeriu a anulação do contrato. Segundo Charles, ao serem notificados do pedido do oficial de Justiça para cancelar o registro da união e das razões apresentadas por ele, o trisal se manifestou legalmente para que o documento da união tivesse sua validade assegurada. Foi quando eles obtiveram a validação.
A juíza afirmou na decisão que, em relações particulares, “é permitido fazer tudo aquilo que a lei não proíbe expressamente”. Além disso, a magistrada alegou que não há vedação ao registro de união poliafetiva em cartórios deste tipo. “Decisões administrativas anteriores do CNJ, que vetaram o reconhecimento de uniões poliafetivas, aplicam-se a Tabelionatos de Notas e Cartórios de Registro Civil, mas não ao RTD [Registro de Títulos e Documentos], que tem finalidades e regime jurídico distintos”, escreveu ela.
O Cartório Segundo Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos de Bauru informou que a decisão já foi cumprida e que não irá recorrer. Com o trânsito em julgado, o procedimento também será arquivado pelo MP-SP. “Atualmente, não existe uma regra específica sobre esse tipo de registro nos cartórios de Títulos e Documentos. No entanto, ele é proibido em outras áreas, como nos cartórios de Registro Civil e nos Tabelionatos de Notas. Sem uma autorização da Justiça, esse registro não pode ser feito”, declarou.
Em relação à punição da escrevente, o cartório alegou que, por ser um caso complexo, ela deveria ter seguido o protocolo interno e encaminhado a situação diretamente ao oficial responsável. “Mesmo assim, como não há uma regra clara sobre o tema, nenhuma punição mais grave foi aplicada, o que foi confirmado pela Corregedoria responsável pelo cartório”, afirmou.