Governo compra vacina indiana por preço 1000% mais caro, com intermédio de empresa envolvida em escândalos; Ministério Público aponta indícios de crime

20210622090246219689o

O Ministério Público Federal (MPF) identificou indícios de crime na compra de 20 milhões de doses da vacina indiana Covaxin, feita pelo Ministério da Saúde, e pediu que o caso – tramitando até então na esfera cível – seja investigado na esfera criminal. Diferente das negociações feitas com outras farmacêuticas, esta contou com intermediação de uma empresa brasileira, a Precisa Medicamentos, que representaria o laboratório indiano Bharat Biotech.

Além disso, houve superfaturamento da compra. O valor pago nas doses foi 1.000% maior do que o anunciado pela própria fabricante. O Estadão teve acesso a documentos do Ministério das Relações Exteriores, como por exemplo, um telegrama da embaixada brasileira em Nova Délhi de agosto de 2020, informando que o imunizante da Bharat Biotech tinha o preço estimado em 100 rúpias (US$ 1,34 a dose).

Continua depois da Publicidade

Em dezembro, outro comunicado diplomático dizia que o produto fabricado na Índia “custaria menos do que uma garrafa de água”. Entretanto, em fevereiro deste ano, o Ministério da Saúde pagou US$ 15 por unidade (R$ 80,70 na cotação da época), fazendo da Covaxin a mais cara das seis vacinas adquiridas em nosso país até agora. O contrato final de aquisição foi firmado em fevereiro, durante gestão do ex-ministro Eduardo Pazuello, totalizando R$ 1,6 bilhão. A ordem para obtenção partiu pessoalmente do presidente Jair Bolsonaro.

Outro fator que chamou atenção do Ministério Público foi o tempo recorde para fechar o negócio: três meses – prazo muito mais curto que o acordo com a Pfizer, por exemplo, que se estendeu por quase onze meses. Vale ressaltar que mesmo sendo mais barato que a vacina indiana, o custo do produto da farmacêutica norte-americana (US$ 10 por dose) foi usado como argumento pelo governo para atrasar a contratação, só finalizada agora em março.

20210622090246219689o
Superfaturamento de vacina levanta sérias suspeitas (Foto: Divulgação/Bharat Biotech)

Alertas do Itamaraty feitos ao governo sobre a eficácia e a segurança do imunizante indiano também foram ignorados. A Anvisa chegou a negar o pedido de importação de doses, também em março, apontando como um dos problemas, a tecnologia utilizada para produzir a vacina. Segundo a agência, não havia garantias de que o produto não pudesse causar outras doenças. Além disso, a Bharat Biotech não teria conseguido comprovar a potência da vacina. A importação excepcional de doses foi autorizada somente neste mês, com uma série de condicionantes.

Continua depois da Publicidade

Na última semana, um servidor do Ministério da Saúde declarou, em depoimento ao MPF, que estaria sofrendo “pressões anormais” para acelerar o processo de compra da Covaxin. O funcionário relatou ter recebido “mensagens de texto, e-mails, telefonemas, pedidos de reuniões” fora de seu horário de expediente, em sábados e domingos – o que não ocorreu em relação a outras vacinas. O coordenador-geral de Aquisições de Insumos Estratégicos para Saúde do Ministério da Saúde, Alex Lial Marinho, foi apontado como o responsável pela pressão.

Precisa Medicamentos se manifesta

Por meio de nota, a Precisa disse que está à disposição da CPI da Covid e que desconhece investigações do MPF sobre o contrato com o Ministério da Saúde: “A empresa está à disposição dos senadores da CPI para prestar todos os esclarecimentos necessários. A Precisa desconhece oficialmente qualquer investigação do Ministério Público Federal em relação ao contrato firmado para importação de vacinas”. A empresa declarou ainda que o preço cobrado pela dose da vacina no Brasil é o mesmo cobrado em outros 13 países.

O Ministério da Saúde, por sua vez, afirmou que ainda não fez nenhum pagamento ao laboratório e que acata as decisões da Anvisa. “O Ministério da Saúde esclarece que mantém diálogo com todos os laboratórios que produzem vacinas Covid-19 disponíveis no mercado. No entanto, só distribui aos Estados imunizantes aprovados pela Anvisa, que avalia rigorosamente a documentação dos fabricantes”, informou a pasta.

Envolvimento em escândalos

Em agosto de 2020, a Precisa Medicamentos, brasileira que intermediou o negócio com o laboratório indiano Bharat Biotech, foi alvo do Ministério Público do Distrito Federal sob acusação de fraude na venda de testes rápidos para Covid-19. Na ocasião, a cúpula da Secretaria de Saúde do governo do DF foi denunciada sob acusação de ter favorecido a organização em um contrato de R$ 21 milhões.

A procuradora da República Luciana Loureiro lembrou ainda que a Precisa tem, entre os sócios, a empresa Global Gestão em Saúde S.A., investigada por ter fechado um contrato de R$ 20 milhões com o governo federal para o fornecimento de medicamentos que nunca foram entregues. O negócio foi feito em 2017, quando o ministério era chefiado pelo atual líder do governo na Câmara dos Deputados, deputado Ricardo Barros (Progressistas-PR), do Centrão. Passados mais de três anos, o ministério alega que ainda negocia o ressarcimento.

Foi uma emenda de Barros, inclusive, que ajudou diretamente na importação da Covaxin. A Medida Provisória permite que a Anvisa conceda “autorização para a importação e distribuição de quaisquer vacinas”, insumos ou medicamentos sem registro na própria agência, desde que aprovadas por autoridades sanitárias de outros países. A MP foi responsável por acrescentar a Central Drugs Standard Control Organization (CDSCO), da Índia, no rol de órgãos habilitados para conceder essa autorização.