Padre Ernani Maia é acusado de assédio sexual contra oito monges em MG, e Igreja se manifesta

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O padre Ernani Maia dos Reis, líder do Mosteiro Santíssima Trindade, na cidade mineira de Monte Sião, é acusado de assédio sexual contra pelo menos oito monges, e de assédio moral contra outras onze pessoas que viviam sob sua autoridade. As informações foram divulgadas pelo UOL, que desde novembro de 2020, entrevistou um total de 40 pessoas para produzir o documentário “Nosso Pai”, lançado nesta quinta-feira (30).

Relatos colhidos pela coluna com integrantes do mosteiro apontam que os crimes sexuais que teriam sido cometidos pelo padre ocorreram entre 2011 e 2018 — ano este em que ele se afastou do mosteiro, sendo as oito vítimas, homens de 20 a 43 anos. Já das 11 pessoas que teriam sofrido constrangimentos e agressões verbais, dez eram mulheres.

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A situação descrita a seguir teria acontecido em 2016. Um monge procurou o padre Ernani para confessar um conflito interior entre sua vocação religiosa e o desejo de constituir família. “Mas você é gay, casar para enganar uma moça, mentir pra ela uma vida inteira? Porque você é gay”, teria dito o líder religioso, de acordo com o relato do monge, que pediu para não ser identificado. Ainda de acordo com o relato, o católico teria pegado uma das mãos do monge e levado até o próprio pênis, enquanto dizia a seguinte frase: “Você tá precisando disso aqui, de pinto”.

As denúncias dos crimes chegaram ao conhecimento da Igreja Católica, via investigações internas, porém Ernani só foi afastado quando ele mesmo pediu para sair do mosteiro, em agosto de 2018, sob alegação de “cansaço e crise vocacional”. Não consta que ele tenha recebido qualquer punição da instituição, que o enviou para uma casa de acolhimento para sacerdotes, por seis meses, com recursos do próprio mosteiro.

Entretanto, em resposta enviada à reportagem, a Igreja disse que “nunca negou qualquer fato (dele) ou ato atribuído quando do exercício na liderança daquela comunidade”, e que não se omitiu em relação ao caso. “Foram constituídas auditorias, comissões de apuração em várias esferas de acompanhamento, sendo as respectivas comunicações, diretas aos representantes legais superiores (Nunciatura e Santa Sé). Nunca houve qualquer omissão nesse sentido”, lê-se no comunicado.

Porém, a instituição não respondeu sobre as conclusões das investigações internas, nem esclareceu que atitudes foram tomadas em relação às alegações de crimes sexuais cometidos pelo padre. Também não respondeu qual o atual estágio do processo, encaminhado ao Vaticano, de saída dele da Igreja.

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Das oito supostas vítimas de violência sexual ouvidas pela UOL, duas relataram os ataques atribuídos a Ernani durante a investigação da Igreja Católica, e todas as oito afirmaram que não receberam qualquer ajuda psicológica ou financeira da instituição. Ernani, por sua vez, negou as acusações em duas oportunidades, mas se recusou a responder às perguntas específicas dos repórteres. Aos 53 anos, ele vive em Franca (SP), onde mantém um consultório de psicanálise.

Em 1994, antes de se tornar padre, Ernani fundou uma comunidade de leigos em Passos (MG), diocese de Guaxupé, denominada “Monges de Trindade”, com sete integrantes entre homens e mulheres, que visitavam residências para rezar o terço e outras atividades religiosas. A postura do religioso, líder do grupo, causava desconforto na igreja local, principalmente pelo poder que exercia sobre os membros. Ele criou uma formação espiritual chamada “Caminho de Emaús”, com duração de nove meses, e atraía cada vez mais participantes em cidades como Monte Sião.

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Em 2006, o bispo de Guaxupé e vice-presidente da Comissão Pastoral da Terra, dom Mauro Pereira Bastos, desconfiou da atuação de Ernani e resolveu dissolver a comunidade. Em setembro, o bispo sofreu um acidente de carro na rodovia Fernão Dias e morreu aos 51 anos.

Dizendo ser perseguido por dom Mauro e outros padres de Passos, Ernani e o grupo Monges da Trindade se mudaram para Monte Sião, sem pedir autorização à Diocese de Guaxupé. “Saímos fugidos de Passos”, disse José Renato Vilela, o único dos monges que teriam sofrido assédio sexual a permitir ser nomeado na reportagem. Os demais, são identificados por numerais, para manter anonimato.

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A paróquia de Monte Sião faz parte da arquidiocese de Pouso Alegre e estava, naquele ano de 2006, sob o comando do arcebispo dom Ricardo Pedro Chaves Pinto Filho, que acolheu a comunidade e ajudou a oficializá-la. Ernani estabeleceu o uso do hábito e o estilo monástico, com clausura. Ao mesmo tempo em que atraía mais seguidores, a comunidade se fechava internamente, com seus membros vivendo em “celas” compartilhadas, que eram quartos com duas camas. Aos poucos, foram parando de sair das dependências do mosteiro, que chegou a contar com 52 pessoas.

Em 2009, Ernani foi ordenado padre pelo arcebispo, e a comunidade, então, foi aceita como o “Mosteiro da Santíssima Trindade”. A população começou a visitar a obra e centenas de pessoas passaram pelo mosteiro nos finais de semana, em busca de atendimento espiritual por meio de conversas com os monges. Aos domingos, a missa recebia cerca de 200 fiéis. Havia produção de alimentos e de roupas. Na Páscoa, a venda de chocolates gerava um faturamento na casa de dezenas de milhares de reais, afirmam os monges ouvidos pela matéria.

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Antiga sede do mosteiro Santíssima Trindade, em Monte Sião. (Foto: José Dacau/UOL)

Registros apontam que Ernani cursou letras, filosofia e teologia e se formou na Escola Paulista de Psicanálise (EPP), no ano de 2015. É pianista e tem livros publicados na área da espiritualidade. As pessoas ouvidas o descrevem como “muito carismático, inteligentíssimo e com um grande poder de persuasão”. Ele também foi definido como sendo “manipulador”, “sedutor”, “diabólico”, “perigoso” e “ardiloso”.

“Ele mandava na nossa alegria e na nossa tristeza. A gente tinha a hora em que a gente podia rir”, afirmou José Renato. Ernani gostava de ser chamado de “nosso pai” e, no início, tinha uma postura paternal. “Ele dizia: ‘eu sou seu pai. Você precisa ter uma boa relação comigo, senão, não vai ter uma boa relação com Deus'”, alegou a vítima 8, uma das que teriam sofrido violência e assédio sexual.

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Confiantes no papel de abade e na postura fraternal e afetiva, os monges compartilhavam seus traumas e angústias íntimas, em sessões de análise com os irmãos. “O Ernani usou a psicanálise para seduzir muitos meninos lá dentro e para ter o que ele queria: relação sexual”, declarou a vítima 8, que chegou a ter um relacionamento amoroso com o líder religioso por cerca de um ano.

Segundo os oito monges, nas sessões de análise, os temas eram restritos aos problemas de relacionamento com mãe e pai e às questões sobre sexualidade. Ernani dirigia os encontros até o ponto em que os monges se reconhecessem homossexuais. “Você contava os problemas para ele. Ele te envolvia. Ele te compreendia, era como se ele te pegasse no colo. Até chegar a um ponto que você via que estava totalmente nas mãos dele”, relatou a vítima 4, que teria sofrido assédio sexual em diversas ocasiões.

“Em uma das sessões, eu contei para ele que na minha infância eu tinha sofrido abuso sexual. Depois, ele usou isso contra mim. Perguntou se eu senti prazer ao ser abusado. Ele usava disso para insinuar que eu era homossexual. Houve um período lá dentro em que eu tentei ser gay. Pensei: ‘eu vou ser gay, vamos ver. Quando chegar um cara aí, eu vou reparar para ver se ele é gostoso ou não’. Só que aquilo me gerava muito conflito. Porque eu não era, eu não sou”, continuou o mesmo rapaz.

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Já a vítima 1 afirmou à reportagem que foi violentada sexualmente, durante uma viagem a Campinas, no ano de 2011. O relato foi ouvido também por monges e monjas entrevistados pelo UOL, que confirmam a essência do que foi dito pelo assediado. Na chegada à cidade, Ernani teria levado a vítima 1 ao cinema e ambos almoçaram em um restaurante de comida abundante, onde ingeriram bebida alcoólica. À noite, o padre teria sugerido que eles fossem para um motel.

“Ernani tomou banho primeiro. E me pediu para fazer o mesmo. Quando saí do banheiro, ele estava deitado na cama. Só de cueca. Deitei e ele começou a passar a mão no meu corpo. Perguntou se eu queria realizar as minhas fantasias sexuais com ele”, contou a vítima 1. “Ele me abraçou e começou a tocar o meu corpo. No final, transou comigo. Foi uma coisa abusiva. Foi ruim, não foi uma coisa como se eu quisesse. Foi uma situação horrível para mim”, continuou.

A vítima 1 afirmou ainda que, depois disso, não conseguia mais viver no mosteiro: “Hoje eu vejo um total abuso emocional e abuso sexual porque [naquele momento] eu não estava em mim. Ele se aproveitou das coisas que eu tinha contado”.  Em 2018, esse jovem saiu do monastério, fazendo com que outros casos de abuso começassem a ser revelados.

Conforme apurado pela matéria, o então abade foi morar em uma casa separada, mais conhecida como “casinha”, dentro do terreno do mosteiro, com ar-condicionado, ducha particular, TV e internet. Ele dizia sofrer de insônia e passou a exigir alimentação diferenciada, como sushi, algo totalmente fora da rotina do lugar.

De acordo com os relatos colhidos, os ataques sexuais na “casinha” obedeciam um padrão: um convite para ver um filme, assistir a um programa de TV ou tomar um banho quente — regalias que não existiam na vida monástica. Os encontros, na maioria das vezes, envolviam também bebida alcoólica .

“Ernani me chamava para ir na casa dele. Pedia para eu deitar na cama e fazer carinho. Ele me recebia de short ou de cueca samba-canção. Até que um dia pediu para massagear a parte íntima dele. Pediu para eu o masturbar”, relatou a vítima 2, apontando ainda que situações semelhantes ocorreram outras vezes. “Ele tentou pegar nas minhas partes, mas eu não deixava”, acrescentou.

Vítimas e fontes ligadas à igreja descreveram dois tipos de armadilhas preparadas pelo padre Ernani para assediar sexualmente os “monges escolhidos”: os convites para encontros na casa do padre Ernani e as viagens para longe de Monte Sião. Três dos outros monges, que também disseram ter sofrido ataques sexuais, reportaram procedimentos semelhantes durante essas viagens, como compras em shopping, refeições fartas em restaurantes, consumo de álcool e alegação de “hotel lotado”, causando necessidade de ida a um motel para passar a noite.

Como descrito pela vítima 7, teria sido difícil terminar o relacionamento: “Eu já cheguei a apanhar dele na cara. Eu tinha que ter relações com ele. Eu não queria. Ele dizia que eu era covarde”. Ernani, entretanto, estaria seguro de que seus segredos jamais vazariam. A vítima afirmou ainda que, depois dessa conversa, foi perseguida por ele, até que sua permanência no mosteiro se tornou inviável.

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Em 2018, dom José Luiz Majella Delgado assumiu a arquidiocese de Pouso Alegre (MG), quando a crise provocada pelo comportamento de Ernani estava prestes a irromper. A vítima 1, que já havia saído da comunidade, desvencilhou-se do controle do padre e, pela primeira vez, afirmou ter sido alvo de abuso sexual praticado pelo religioso. “Ele contou que foi embriagado e que o Ernani tirou a virgindade dele. Isso gerou uma grande revolta. E aí a gente começou a ouvir um irmão reclamar daqui, o outro dali”, lembrou a vítima 4.

As evidências e as histórias de abuso sexual fizeram com que as vítimas se mobilizassem em 2018 e se reunissem com o conselho do Mosteiro da Santíssima Trindade para expor o comportamento do “nosso pai”. Naquela altura, Ernani visitava Caldas Novas (GO), em viagem que foi presente da comunidade por ocasião do Dia dos Pais, data mais importante para eles. Seu afastamento foi indicado.

Segundo os relatos, o padre escreveu uma carta ao arcebispo de Pouso Alegre alegando “cansaço e desmotivação”. Nesse momento, ele teria pedido a dom Majella o seu afastamento, sendo então levado a uma clínica ligada à Igreja Católica, na região metropolitana de Curitiba. Meses depois, já em 2019, Ernani Maia dos Reis se mudou para Franca (SP), onde mantém seu consultório de psicanálise. Ernani nunca mais voltou ao Mosteiro da Santíssima Trindade.