Justiça impede prefeito do Rio de Janeiro de recolher livros e tirar licença da Bienal; entenda o caso

O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro concedeu uma liminar à Bienal do Livro na noite dessa sexta-feira (06) que impede a prefeitura da cidade de recolher qualquer publicação e de tirar a licença de funcionamento do evento.

A feira de livros está sendo alvo de atenção desde quinta-feira (5) quando o prefeito carioca Marcelo Crivella publicou um vídeo em suas redes sociais, divulgando uma determinação de que a Bienal deveria recolher todos os exemplares da HQ “Vingadores: A Cruzada das Crianças” por ter “conteúdo sexual para menores”.

“Pessoal, precisamos proteger as nossas crianças. Por isso, determinamos que os organizadores da Bienal recolhessem os livros com conteúdos impróprios para menores. Não é correto que elas tenham acesso precoce a assuntos que não estão de acordo com suas idades”, escreveu Crivella no Twitter.

O conteúdo a que ele se refere é um beijo entre dois personagens homens representado no miolo do quadrinho, de 264 páginas, que não é indicado a todos os públicos, como o prefeito fez acreditar. De acordo com a classificação indicativa da Marvel nos Estados Unidos, a HQ só pode ser lida a partir dos 13 anos. A edição é escrita pelo norte-americano Allan Heinberg e ilustrada pelo britânico Jim Cheung.

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A prefeitura alega que não se trataria de homofobia, mas sim do respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que recomenda que “publicações com cenas impróprias a crianças e adolescentes sejam comercializadas com lacre”. Entretanto especialistas no estatuto apontaram ao UOL que o conteúdo não é considerado impróprio, nem pornográfico. “Uma cena de beijo entre adolescente ou adultos, entre héteros ou homossexuais, não configura ato sexual ou pornográfico e não se enquadraria nesses crimes dispostos no ECA”, afirmou Ariel de Castro Alves, advogado e ex-conselheiro do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) e conselheiro do Condepe (Conselho Estadual dos Direitos Humanos de São Paulo).

A presidente da Comissão de Direitos da Criança e do Adolescente da OAB, Suzana do Monte Moreira, ainda explicou à revista Exame que a determinação do estatuto só se aplicaria a casos em que há imagens de nudez ou sexo explícito, diferente do caso do livro da Marvel, que traz apenas a ilustração de um beijo entre dois homens inteiramente vestidos.

Beijo entre os personagens no miolo da HQ dos Vingadores (Foto: Reprodução/TV Globo)

A Bienal se recusou a cumprir o pedido da prefeitura e, por isso, na manhã de sexta-feira, a Seop (Secretaria de Ordem Pública) do município fez uma operação no evento com o objetivo de encontrar e recolher o “material impróprio para crianças e adolescentes” caso eles não estivessem propriamente embalados e identificados. Entretanto, a equipe de 12 agentes não encontrou nenhum exemplar nos 150 estandes da feira – os leitores foram mais rápidos e esgotaram os livros do tipo logo após a abertura do evento.

Fiscais da prefeitura chegando à Bienal (Foto: Reprodução/TV Globo)

Algumas horas depois, a feira postou uma nota oficial repudiando a ação e dizendo que havia entrado com um mandado de segurança preventivo no Tribunal de Justiça “a fim de garantir o pleno funcionamento do evento e o direito dos expositores de comercializar obras literárias sobre as mais diversas temáticas”. A resposta da Justiça veio algumas horas depois, pela liminar que já mencionamos.

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A notícia repercutiu internacionalmente, e foi repudiada por várias editoras e por figuras públicas, como o youtuber Felipe Neto que decidiu distribuir gratuitamente 14 mil livros com temática LGBT durante o evento. A partir do meio-dia deste sábado (07), as obras começaram a ser entregues dentro de um saco preto com o aviso “Esse livro é impróprio para pessoas atrasadas, retrógradas e preconceituosas”. A ação esgotou o estoque de obras desse tema na Bienal. Entre os títulos estão “Arrase!”, de RuPaul; “Boy Erased”, de Garrard Conley; “Dois Garotos se Beijando”, de David Levithan; e “Ninguém Nasce Herói” de Eric Novello.

Fernanda Paes Leme também se manifestou contra a atitude de Crivella, chamando-a de “censura e homofobia”. “Não podemos ficar passivos a mais uma demonstração de autoritarismo. É absurdo que a simples imagem de duas pessoas se beijando seja tão agressiva aos olhos do retrocesso. Que essa situação patética e arbitrária sirva para jogar luz ao debate sobre o preconceito que a comunidade LGBTQI+ sofre. O problema das crianças do Rio de Janeiro não está em uma revistinha em quadrinhos, prefeito. Está na falta de saneamento, de segurança, de educação, de uma vida com dignidade que deveria ser assegurada pelos órgãos públicos”, acusou.

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“Quando uma criança vê um casal gay se beijando ela não aprende a ser gay, ela apreende que as pessoas se amam. Não é o beijo gay que tem que ser impedido, é o homem batendo em mulher, o negro sendo chicoteado em super mercado, a desigualdade em cada sinal…”, refletiu Fábio Porchat. Ele ainda cutucou Crivella: “Olha, tem gente que tem vergonha do prefeito da própria cidade, mas nós cariocas estamos de parabéns!”.

Até o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), disse ao Estadão/Broadcast que não viu nada “de mais” no livro em quadrinhos. Para o ministro, em pleno século 21 é preciso ter uma “visão tolerante” de mundo. “É a visão dele, cada qual tire a sua conclusão. Quem sabe ele recolhe as TVs também. Estou cansado de ver beijo homossexual em novela”, ironizou Marco Aurélio.

Na manhã deste sábado, a Folha de São Paulo ainda colocou a imagem do livro em destaque como capa. “Crivella tenta censurar HQ com beijo gay, mas é barrado”, apontou na manchete.

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Atualização às 16h: Em atendimento a recurso apresentado pela Prefeitura, o presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, o desembargador Cláudio de Mello Tavares, suspendeu a liminar obtida pela organização da Bienal.

A nova decisão manda recolher os livros com temática LGBTQ+ para o público jovem e infantil que não estejam lacrados e com advertência para o conteúdo, sob pena inclusive da cassação de licença do evento.

No texto, o desembargador “ressalta não se tratar de ato de censura, mas reputa ser inadequado que uma obra de super-herói, atrativa ao público infanto-juvenil, a que se destina, apresente e ilustre o tema da homossexualidade a adolescentes e crianças, sem que os pais sejam devidamente alertados […]”.

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Atualização às 13h30 de 08/09: O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, suspendeu neste domingo (8), a liminar emitida pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que permitia a apreensão de livros na Bienal.

Toffoli suspendeu a liminar do TJ-RJ (Foto: Reprodução/TV Globo)

A decisão atendeu a um pedido da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que argumentou que a determinação do desembargador Tavares “fere frontalmente a igualdade, a liberdade de expressão artística e o direito à informação”, contidos na Constituição. Dodge ainda disse que houve uma “censura genérica”.

“O regime democrático pressupõe um ambiente de livre trânsito de ideias, no qual todos tenham direito a voz. De fato, a democracia somente se firma e progride em um ambiente em que diferentes convicções e visões de mundo possam ser expostas, defendidas e confrontadas umas com as outras, em um debate rico, plural e resolutivo”, afirmou Toffoli ao explicar sua decisão.