O desfecho do caso de Mariana Ferrer segue causando revolta para quem pediu justiça pela jovem. Ainda em setembro, o Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) voltou atrás e declarou improcedente, por falta de provas, a denúncia contra André de Camargo Aranha, acusado de estuprar a blogueira. Vale lembrar, no entanto, que exames realizados por autoridades comprovaram que houve, sim, conjunção carnal e ruptura do hímen da vítima, assim como o sêmen do homem de 43 anos foi encontrado na calcinha da influencer.
O promotor Thiago Carriço de Oliveira, por sua vez, aceitou a argumentação de que o acusado cometeu o que foi denominado como “estupro culposo”, que seria um ‘estupro em que não há a intenção de estuprar’. OI?! A infração não tem nenhum precedente. Trata-se de uma sentença inédita na história desse país, e de um crime jamais previsto na lei. Como ninguém pode ser condenado por uma infração que não é definida judicialmente, o empresário foi absolvido. Sim, é isso mesmo que você está lendo. Para piorar, Mariana foi constantemente humilhada durante o processo que determinou a inocência de André Aranha.
O site The Intercept Brasil teve acesso ao vídeo da audiência em questão, realizada remotamente em julho. Na sessão, o advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho, de André de Camargo, chegou a mostrar cópias de fotos sensuais produzidas pela jovem enquanto modelo profissional. O gesto foi interpretado por internautas como uma tentativa de se escorar no datado e misógino argumento de que a mulher, ao usar roupas curtas, pede para ser violada ou estuprada. Ferrer apontou uma das fotos usadas pela defesa do réu, alegando que a imagem teria sido adulterada. “Essa imagem aqui foi manipulada?”, questionou ele, segurando outro registro.
“Muito bonita [a foto] por sinal, como o senhor disse, né? Cometendo assédio moral contra mim. O senhor tem idade pra ser meu pai, o senhor tem que se ater aos fatos”, repreendeu a blogueira. No entanto, Gastão endureceu as acusações e agressões infundadas. “Graças a Deus eu não tenho uma filha do teu nível e também peço a Deus que meu filho não encontre uma mulher feito você. Não dá pra tu dar o seu showzinho. Teu showzinho você vai lá dar no Instagram depois, pra ganhar mais seguidores. Tu vive disso”, disparou.
Insistente, o advogado seguiu menosprezando a jovem. “Mariana, vamos ser sinceros, fala a verdade. Tu trabalhava no café, perdeu o emprego, está com o aluguel atrasado há 7 meses, era uma desconhecida. Isso é seu ganha pão, né Mariana? A verdade é essa. É seu ganha pão, a desgraça dos outros. Manipular essa história de ser virgem…”, comentou, sendo interrompido pelo juiz Rudson Marcos. “Isso é questão de alegação”, avisou ele.
Sem apresentar nenhuma ligação com o crime, novas fotos de Mariana foram exibidas. “Só pra mostrar, essa última foto que ela mandou o defensor público juntar, e que ela diz que foi manipulada… essa foto aqui foi extraída de um site de um fotógrafo, onde (sic) a única foto chupando dedinho e com posições ginecológicas é a dela. Não tem nada demais essas fotos?”, questionou, como se isso fizesse alguma diferença num processo, a priori, sério. “Mas eu estou de roupa, não tem nada demais mesmo! A pessoa que é virgem, não é freira não, doutor. A gente está no ano de 2020”, rebateu a vítima.
“Não estou dizendo que é freira. Mas por que você apagou essa foto então? E só aparece essa tua carinha chorando… só falta por uma auréola na cabeça. Não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso e essas lágrimas de crocodilo”, acusou a defesa do réu. Ao perceber o estado emocional de Mariana, o promotor ofereceu um tempo para a moça se recompor e beber uma água, e disse que se preciso, suspenderia a audiência.
Aos prantos, Mariana desabafou: “Eu gostaria de respeito, doutor, excelentíssimo, eu tô implorando por respeito, no mínimo! Nem os acusados são tratados da forma que estou sendo tratada, pelo amor de Deus, gente! Nem os acusados de assassinato são tratados como estou sendo tratada! Eu sou uma pessoa ilibada, nunca cometi crime contra ninguém”. Mesmo muito abalada, a influencer permaneceu na audiência até o fim. Assista aos registros revoltantes abaixo, se tiver estômago para tanta misoginia:
https://www.youtube.com/watch?v=X–JAQShBBw&feature=emb_logo
Por meio da assessoria de imprensa, o Ministério Público informou que o promotor Thiago Carriço de Oliveira se manifestou ao fim da segunda audiência (cujas imagens a reportagem não teve acesso) em relação aos excessos do advogado Cláudio Gastão. Em comunicado ao The Intercept, a defesa ressaltou “que o papel do advogado é ser intransigente na defesa dos interesses de seu cliente”.
“Gastão Filho informa que, em sendo um processo que correu em segredo de Justiça, não irá comentar sobre trechos das referidas audiências, que da forma abordada pelas perguntas, estão fora do contexto. Reforça ainda que todo posicionamento adotado foi para elucidar os fatos e mostrar a verdade perante a falsa acusação de ter sido drogada e de estupro levantada por Mariana”, disse também o advogado.
Estupro de vulnerável
Em julho de 2019, o Ministério Público de Santa Catarina seguiu o mesmo entendimento da polícia civil no inquérito e defendeu que Mariana não tinha discernimento para consentir com a relação sexual – que teria ocorrido em uma área privada de uma festa, em 15 de dezembro de 2018, no beach club Café de La Musique, em Jurerê Internacional, em Florianópolis.
André Camargo de Aranha, então, foi acusado pelo crime de estupro de vulnerável, que prevê situações de “conjunção carnal” ou “prática de outro ato libidinoso” com menor de 14 anos ou “com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”.
Em sua versão, a jovem aponta que teria sido dopada e, por isso, não se lembrava do que havia acontecido e, consequentemente, não poderia ter consentido com a relação. Áudios gravados por ela no celular naquele momento também foram juntados ao inquérito policial. Neles, ela pedia, com a voz embaraçada, ajuda a pelo menos três amigos.
Naquela noite, pouco após o estupro, Mariana voltou para casa de Uber. O motorista relatou à polícia que ela parecia estar “sob o efeito de algum entorpecente”. No entanto, a defesa descaracterizou a vítima, afirmando que ela conseguiu se deslocar do Café de la Musique para outro beach club após o crime.
Outro ponto citado nas alegações finais foi o exame toxicológico feito por Ferrer, cujo resultado foi negativo para entorpecentes e bebidas. Pessoas que trabalhavam no Café e foram ouvidas na condição de testemunhas também relataram que não perceberam diferença no comportamento dela.
Na época do inquérito da Polícia Civil, no entanto, a delegada Caroline não se contentou com o primeiro laudo pericial, pois ele veio sem descrição, e solicitou mais detalhes ao Instituto Geral de Perícias. O órgão, então, esclareceu que pode haver substâncias ainda não apreendidas e reconhecidas pela polícia, o que dificulta a pesquisa de todas elas. Além disso, o exame só foi submetido para análise quatro meses após o colhimento do material.
“Uma das testemunhas disse que o próprio investigado teria afirmado, em relação à vítima, que ‘ela era louca e tava muito bêbada’. Extrai-se que ele ainda que possivelmente no intuito de descredibilizar a vítima, indicou elementos que sinalizam o estado de vulnerabilidade da vítima”, afirmou a delegada no relato final do inquérito.
Conclusão
O fato da jovem estar ou não dopada foi um dos pontos principais analisados pelo juiz. Quando a denúncia foi encaminhada para o Ministério Público em julho de 2019, o caso estava sob responsabilidade do promotor de Justiça Alexandre Piazza, que havia aceitado o inquérito da polícia em sua integralidade. No entanto, quem conduziu a audiência de instrução e julgamento, e apresentou as alegações finais, foi o promotor Thiago Carriço de Oliveira.
Segundo o Ministério Público, Piazza optou, voluntariamente, por sair da promotoria onde atuava para assumir outra promotoria. E, então, diferente do que ele havia concluído, o novo promotor apontou que não teria havido “dolo” na ação de Aranha, ou seja, a “intenção de estuprar”. Para Carriço, não teria sido possível para o empresário comprovar tecnicamente que a vítima estava sob efeito de drogas e que, por isso, ela não teria o discernimento de evitar o ato sexual.
“Não há qualquer indicação nos autos acerca do dolo – em seu aspecto de consciência acerca da elementar de vulnerabilidade – não se afigurando razoável presumir que soubesse ou que deveria saber que a vítima não desejava a relação”, sustentou o segundo promotor. Dentro desse contexto, ele defendeu o fator “culposo” na hipótese da ocorrência de “erro do tipo criminal”.
Para embasar sua tese, ele citou como exemplo, o fato de que “menores de 14 anos podem aparentar a terceiros já ter atingido a referida idade [maior de 14 anos]”. Nesse caso, estupro de vulnerável pela condição da idade seria descartado, caso o autor não tivesse “conhecimento sobre a verdadeira idade da vítima”.
Carriço, então, pediu a absolvição do réu, que foi concedida pelo juiz Rudson Marcos em sentença assinada no último dia 9 de setembro. “Diante da ausência de elementos probatórios capazes de estabelecer o juízo de certeza, mormente no tocante à ausência de discernimento para a prática do ato ou da impossibilidade de oferecer resistência, indispensáveis para sustentar uma condenação, decido a favor do acusado André de Camargo Aranha”, finalizou o juiz.
Os assistentes de acusação de Mariana pretendem recorrer da decisão às instâncias superiores.
[Atualização às 20h10 de 04/10]
Após a repercussão do caso, o The Intercept Brasil esclareceu que criou o termo “estupro culposo” baseado nas alegações do promotor do caso de Mariana Ferrer — o termo, em si, não foi utilizado na sentença. “O promotor do caso Mariana Ferrer afirma nas alegações finais ao juiz que não havia como André de Camargo Aranha saber, durante o ato sexual, que ela não estava em condições de consentir. Para ele, não houve “intenção” de estuprar. Ele criou assim a ideia de um ‘estupro culposo’”, escreveu o veículo no Twitter. E acrescentou, sobre a origem do termo: “Essa distinção entre culposo e doloso foi criada para o crime de homicídio. Homicídio culposo é quando alguém comete o crime sem ter intenção. Por exemplo: alguém que, dirigindo dentro das regras de trânsito, atropela e mata um pedestre que surge de repente fora da faixa”.
Essa distinção entre culposo e doloso foi criada para o crime de homicídio. Homicídio culposo é quando alguém comete o crime sem ter intenção. Por exemplo: alguém que, dirigindo dentro das regras de trânsito, atropela e mata um pedestre que surge de repente fora da faixa.
— Intercept Brasil (@TheInterceptBr) November 3, 2020