Seis pessoas foram infectadas com o vírus HIV depois de receberem transplantes de órgãos no Rio de Janeiro. Os casos foram revelados na sexta-feira (11), e são investigados pela Polícia Federal. Neste domingo (13), o “Fantástico” falou pessoalmente com um dos pacientes, que pediu por justiça. Documentos que apontaram as irregularidades do laboratório em questão também foram divulgados. Na manhã desta segunda (14), a Polícia Civil do RJ iniciou a Operação Verum, para prender 4 pessoas no caso.
O erro que resultou nas infecções aconteceu dentro de uma das unidades do laboratório Patologia Clínica Doutor Saleme (PCS-Saleme), contratado pela Secretaria Estadual de Saúde. A clínica emitiu laudos negativos para HIV de dois doadores – um homem e uma mulher – que tinham o vírus. Ao todo, nove órgãos foram transplantados.
O que diz uma das pacientes infectadas
A mulher não quis se identificar e contou ter recebido um rim. “É como se o chão se abrisse e você… Sabe? Porque é a minha vida e daqui pra frente, a minha vida mudou. A minha família tá revoltada, porque a gente entra lá com a maior confiança de que vai dar tudo certo”, afirmou.
Em seguida, ela desabafou sobre sua atual situação. “Vai mudar a minha vida completamente, porque antes era só os meus remédios pra não ter rejeição dos meus rins. Eu não fiz nada pra adquirir isso. O erro foi de pessoas irresponsáveis. Porque eu acho que quem lida com a vida de uma outra tem que ter responsabilidade e muita”, observou.
A mulher ainda teceu críticas ao PCS-Saleme. “Eles não estão lidando com a nossa vida. Foi só dinheiro que eles viram, né? E foi muito, não foi pouco. Foi muito dinheiro. Não tem nenhuma justificativa. Eu quero punição”, pediu.
Segundo a paciente, ela só recebeu a notícia no último dia 3 de outubro, e foi encaminhada a um posto de saúde, onde a infecção foi confirmada. No entanto, a moça relatou não ter recebido orientações sobre tratamento ou medicamentos, e que sua próxima consulta estava marcada apenas para o dia 29 deste mês.
Contudo, ela só passou a ser procurada pelas autoridades após a Band News FM expor o caso, na quinta (10). Com a repercussão, um novo atendimento foi agendado para esta terça (15). O Governo do estado informou que os pacientes infectados estariam recebendo atendimento clínico e psicológico, informação desmentida pela vítima. “É essa a minha revolta. Porque eu ia ficar até dia 29 sem medicação nenhuma”, explicou.
Por fim, a mulher garantiu que vai lutar para que os responsáveis pelo erro sejam punidos e para que outras pessoas possam realizar transplantes com segurança: “Que felicidade que eu fiquei, meu Deus, quando eu recebi meu rim. Quando o médico disse pra mim: ‘Você jamais vai fazer hemodiálise’. Meu Deus do céu, fui no céu. Eu quero isso para os outros, sabe? A gente tem que ter essa confiança. Essa história não pode continuar, tem que acabar aqui. Então, tem que haver muita responsabilidade no que está sendo feito, para que outras pessoas possam fazer seus transplantes e pronto”.
Outro paciente recebeu órgão, mas não foi infectado
A reportagem também conversou por telefone com um segundo paciente, que recebeu uma córnea dos doadores com HIV, mas não foi infectado pelo vírus. A família relatou estar preocupada, porque recebeu um aviso sobre o que aconteceu, mas nenhum tipo de atendimento.
“A gente fica preocupado, né? Que a gente tá bom e de repente pega um negócio desse aí e aí complica mais. Eu vou ver como é que vai ser, o médico marcou pra terça-feira aí, entendeu?”, informou.
Laboratório estava irregular e foi fechado
A Anvisa e a Vigilância Sanitária do Estado realizaram uma vistoria e decidiram fechar a unidade do laboratório PCS-Saleme. A clínica está localizada dentro de um instituto de saúde na zona sul do Rio de Janeiro. Informações e fotos da auditoria que apontaram 39 irregularidades do local foram obtidas pelo “Fantástico”.
Entre as mais graves, o laboratório não possuía licença para funcionar no instituto, amostras de sangue estavam sem identificação, o material biológico era armazenado em uma geladeira comum, não foram apresentados registros de treinamento dos funcionários e os aparelhos de ar-condicionado estavam mal conectados, sem condições adequadas de higiene.
A Secretaria Estadual de Saúde, por sua vez, declarou que o PCS-Saleme não presta mais nenhum tipo de serviço ao estado desde o início do mês, quando foram confirmados os casos. O laboratório tinha um contrato com o governo do Rio desde dezembro do ano passado, no valor de R$11 milhões. Agora, os testes dos doadores passam a ser feitos exclusivamente pelo Instituto Estadual de Hematologia (HEMORIO).
O diretor-geral da Central Estadual de Transplantes, Alexandre Souza Cauduro, comunicou em um ofício interno nesta semana, que a atual gestão não foi consultada durante o processo licitatório e também não participou da elaboração do contrato. Ele ressaltou que questionou a habilitação do laboratório, pois os documentos necessários para a avaliação não foram apresentados.
Ligação do laboratório com as autoridades do Rio
Os dois sócios da clínica, Matheus Vieira e Walter Vieira, são parentes do ex-secretário estadual de Saúde, Dr. Luizinho, atualmente deputado federal pelo PP. Matheus é primo do político, enquanto Walter é casado com a tia dele. O contrato entre o governo e o laboratório foi assinado três meses após Dr. Luizinho deixar a Secretaria de Saúde.
Em nota, o deputado se pronunciou. “Enquanto Secretário de Estado de Saúde, jamais participei da contratação deste ou de qualquer outro laboratório”, esclareceu. Até o momento, Matheus e Walter não se manifestaram sobre o episódio.
Investigação
A Polícia Civil, o Ministério Público e o Conselho Regional de Medicina estão investigando a infecção dos pacientes por HIV. Um dos laudos que afirmou que os pacientes não tinham o vírus foi assinado por Jacqueline Iris Bacellar de Assis. O número de biomédica que consta no documento não pertence a ela, mas a outra pessoa que não exerce mais a profissão.
Em entrevista ao jornal O Globo, Jacqueline alegou que nunca teve registro como biomédica, e que seu nome foi usado pelo PCS-Saleme. “Eu trabalho com eles desde outubro do ano passado, nunca tive minha carteira assinada, só agora em setembro. E todo o período o serviço que eu prestei para eles foi de supervisor administrativo”, disse.
O laboratório, porém, apresentou outra versão: a de que Jacqueline se apresentou como biomédica. Eles também encaminharam uma suposta troca de mensagem com a mulher, na qual ela envia um diploma.
A atual Secretária Estadual de Saúde, Claudia Mello, informou que o governo do estado irá trabalhar com outro laboratório por meio de uma contratação emergencial, sem licitação. Ela ressaltou que todos os protocolos serão revisados para evitar novos problemas. “É evidente que a falha ocorreu. Pra mim é uma falha inadmissível”, cravou.
“Gostaria inicialmente de demonstrar a minha total indignação com relação a esse assunto, com relação a todo o ocorrido. Esse caso vai ser apurado totalmente, em cada linha que sair para a gente poder ter o total rigor com a determinação da sindicância que eu mesma mandei instaurar”, acrescentou Claudia.
A secretária também prometeu corrigir as falhas no atendimento aos pacientes infectados. “Então, em relação a isso, a gente quer afirmar que a partir de amanhã todas as buscas serão ampliadas, as equipes farão mais buscas às pessoas. Nós queremos muito ouvir essas pessoas e apoiá-las no que for preciso”, concluiu.
Ministério da Saúde se pronuncia
A ministra da Saúde, Nísia Trindade, solicitou à Polícia Federal que investigue o caso e determinou a realização de uma auditoria na Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro. “O que aconteceu é gravíssimo. Eu manifesto aqui, mais do que uma indignação, não é para acontecer, mas uma vez acontecendo, tem que ser apurado. Essa auditoria é uma auditoria que vai verificar todos os processos de trabalho, testes, o que foi feito, o que tem fora da regra de como deve ser”, explicou.
Ele destacou, ainda, que o Brasil possui o maior sistema público de transplantes do mundo, sendo reconhecido como um dos mais seguros para esse tipo de procedimento. O país é o segundo que mais realiza as operações, ficando atrás apenas dos Estados Unidos. Somente no ano passado, foram feitos 29 mil transplantes em solo brasileiro, como citou Nísia.
“Um caso em que há irregularidade que tem que ser apurado. Ele não pode contaminar a visão de todo um sistema, que até hoje tem funcionado muito bem, que é garantia de vida para tantas pessoas e que precisa ser fortalecido e que precisamos, inclusive, do apoio das famílias na doação de órgãos”, salientou a ministra.
Laboratório aponta erro
Em comunicado, laboratório PCS-Saleme declarou que os resultados preliminares da sindicância interna apontaram um erro humano na transcrição dos resultados dos dois testes de HIV. A clínica acrescentou que está à disposição das autoridades e colaborando com o governo do Rio de Janeiro. Além disso, garantiu que dará todo o suporte necessário às vítimas assim que tiver acesso oficial às identidades delas.
Assista à íntegra:
Sócios são presos
Nesta segunda (14), a Polícia Civil do Rio de Janeiro iniciou a Operação Verum para tentar prender quatro investigados no caso. Conforme o g1, Walter Vieira, ginecologista e responsável técnico do laboratório, já foi detido e apontado pelo governo do Rio como responsável pelo erro que causou as infecções.
O segundo é Ivanilson Fernandes dos Santos, listado como um dos responsáveis pelo laudo. Os alvos dos mandados de prisão investigam crime contra as relações de consumo, associação criminosa, falsidade ideológica, falsificação de documento particular e infração sanitária. As autoridades também apuram se o PCS-Saleme falsificou laudos em outros casos além dos transplantes. A unidade atendia em mais 10 unidades de saúde estadual.
Agentes da Delegacia do Consumidor (Decon) começaram a cumprir 11 mandados de busca e apreensão, expedidos pelo Plantão Judiciário do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. A sede da clínica, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, precisou ser arrombada pelos policiais. O local estava interditado desde a semana passada.
“Diversas diligências complementares estão sendo realizadas para identificar toda a cadeia de profissionais envolvidos nesse esquema criminoso, e todos serão prontamente responsabilizados na medida da sua respectiva culpabilidade”, comunicou a Decon.
Para a PC, o grupo falsificou os laudos. “As investigações indicam que os laudos, falsificados por um grupo criminoso, foram utilizados pelas equipes médicas, induzindo-as ao erro, o que levou à infecção dos pacientes. Um dos pacientes veio a falecer, com as causas da morte ainda sob investigação”, atualizou.
Os advogados dos sócios, por sua vez, negaram as acusações: “A defesa de Walter e Mateus Vieira, sócios do PCS Lab Saleme, repudia com veemência a suposta existência de um esquema criminoso para forjar laudos dentro do laboratório, uma empresa que atua no mercado há mais de 50 anos. Ambos prestarão todos os esclarecimentos à Justiça”.
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