Hugo Gloss

Entrevista: Glamour Garcia, a Britney de “A Dona do Pedaço”, conta sobre aceitação e torcida do público pela personagem e revela se já viveu mesmo dilema da jovem

(Foto: João Cotta/Gshow/Globo)

Com seu jeito meigo e inocente, a personagem Britney da novela “A Dona do Pedaço” conquistou todo o país e se tornou a verdadeira princesinha pop do horário das 21h. Por trás de todo esse sucesso, está a atriz Glamour Garcia, que recebeu a importante missão de dar vida à jovem e ser um símbolo de representatividade para tantas pessoas que vivem os mesmos dilemas que a garota. Assumidamente uma mulher trans, a estrela vem se destacando cada vez mais na trama ao abordar importantes assuntos com muita verdade e leveza.

Durante um bate-papo exclusivo com o hugogloss.com, Glamour se abriu sobre sua história de vida, desde a infância, quando começou a perceber que não se identificava com o gênero masculino, até a superação de todos os preconceitos para realizar seus sonhos. “Infelizmente eu vivi, sim, muitos episódios de preconceito… Mas acho que o que vale mesmo é a superação, que sempre vai estar acima da violência“, revelou.

Vivendo um momento super bem sucedido na carreira e tendo o reconhecimento do público com seu trabalho, a atriz contou como tem sido os bastidores da novela. “Imagina, contracenar não somente com grandes nomes, mas simplesmente os maiores da arte brasileira. É um presente imensurável. Esse momento vai ficar muito marcado na minha vida como atriz”, contou.

Enquanto sua personagem vive um dilema sobre contar ou não a respeito da sua identidade de gênero para o cozinheiro Abel, interpretado pelo ator Pedro Carvalho, na vida real, Glamour tem um relacionamento sério e vai tudo muito bem, obrigada. “Para mim, isso [de falar sobre a transsexualidade] nunca foi um problema e nem um empecilho… Na hora ‘H’ sempre tudo deu certo, o que importa é o tesão, o sentimento e a paixão“, afirmou.

Ciente da oportunidade que é poder mostrar uma história que inspira as mais diversas pessoas, mas principalmente para aquelas que se identificam como trans, Garcia não poderia estar mais feliz com a repercussão do seu trabalho. “A gente quer abordar essa temática de uma forma mais leve, mas deixando bem claro que não existe uma desvalorização de cada situação e sentimento. Os sentimentos das pessoas trans e a possibilidade de se reconhecerem nas vivências da Britney é muito importante para gente. Queremos levar de uma forma mais leve para poder fazer com que o assunto seja discutido e pensado“, explicou.

Confira a entrevista com a atriz Glamour Garcia na íntegra!

Hugo Gloss – Bom, primeiro queria que você contasse um pouco sobre sua história… Quando você descobriu que era uma mulher trans?

Glamour Garcia – Acho que descobrir mesmo, a gente já sabe desde a infância, né?! Existem várias eventualidades, tem as pessoas que assumem sua transsexualidade em determinados momentos da vida, mas a gente cria essa consciência desde muito cedo. Eu percebi desde criança, mas ter a coragem para praticar e ir para a sociedade para lutar pelos meus direitos aconteceu da adolescência para frente. Já me assumir esteticamente foi quando estava mais adulta. Desde então eu tô aí, na luta por mim e por todas.

HG – O processo de aceitação seu consigo mesma e com as pessoas ao seu redor foi muito difícil?

GG – Foi bem difícil sim, imagine que era ali no final dos anos 1980 e início dos anos 1990, então esse assunto era uma problemática bem grande. Não tinha muito espaço na mídia e, na sociedade então, não tinha espaço algum, tudo só se resumia a violência contra essas pessoas. Nesta época foi bem mais complicado. Já na adolescência, eu conseguia absorver um pouco mais as questões sobre meus direitos e os posicionamentos, aí o processo começou a ficar um pouco mais tranquilo para mim, minha família, amigos e, graças a Deus, eu tenho sorte de estar cercada só de amor até hoje.

HG – Você chegou a sofrer algumas violências por causa do preconceito. Como foi o processo para passar por cima desses obstáculos e superar as marcas que elas deixaram?

GG – Eu fui estudar, trabalhar, focar na minha carreira e nas minhas amizades. Infelizmente eu vivi, sim, muitos episódios de preconceito, não somente dentro do convívio pessoal como de terceiros também, mas acho que não vale a pena ficar relatando e revivendo isso porque não acredito ser construtivo. Acho que o que vale mesmo é a superação, que sempre vai estar acima da violência.

HG – O fato de ser uma mulher trans alguma vez se tornou um obstáculo para conquistar oportunidades?

GG – Olha, acho que acabou sendo, sim… O mercado ainda é muito transfóbico, a classe artística do cinema, teatro e televisão continua reproduzindo formas de preconceito. Mas, ao mesmo tempo, sempre fui muito ativa e estive a frente da minha própria carreira. Então, eu sempre procurei oportunidades nas mais diversas formas artísticas e isso fez com que eu tivesse uma ótima trajetória em vários meios de linguagem. Dou graças a Deus, porque a gente tem algumas dificuldades, mas isso acabou me fortalecendo.



HG – Como surgiu o convite para participar da novela e qual foi sua reação? Como tem sido contracenar com grandes nomes da teledramaturgia como Marco Nanini e Betty Faria?

GG – Eu recebi o convite pela minha agência, mas a iniciativa chegou até eles pelo próprio produtor de elenco e o autor Walcyr Carrasco. Eles queriam que eu fizesse um teste. Em 2018, eu fiquei na Globo fazendo os estudos criativos e em janeiro eu recebi a confirmação. Foi um grande presente na minha vida. Imagina, contracenar não somente com grandes nomes, mas simplesmente os maiores da arte brasileira, é um presente imensurável. Esse momento vai ficar muito marcado na minha vida como atriz, porque são meus grandes ídolos que estão ali comigo todos os dias e isso é uma honra.

HG – Eu queria saber um pouco do processo de construção da personagem. Em quem você se inspira? Tem muito da sua história na Britney?

GG – Na verdade eu me inspiro muito em amigas que são jovens e trans com quem tenho amizade e fazem parte dessa geração da Britney. Elas participam de um momento da sociedade em que as coisas são bem diferentes. Foi nos últimos dez anos que houve as principais mudanças na questão da cidadania para as pessoas trans. Então, eu me inspiro nestas amigas que são artistas e também estão em outras áreas profissionais, mas que já têm uns dez anos a menos que eu.

HG – Apesar de ser uma trama com uma carga emocional bem pesada, vocês têm construído tudo com muita leveza, mesmo nas cenas de transfobia. É intencional abordar essa história desta forma?

GG – É intencional, a gente quer abordar essa temática de uma forma mais leve, mas deixando bem claro que não existe uma desvalorização de cada situação e sentimento. Os sentimentos das pessoas trans e a possibilidade de se reconhecerem nas vivências da Britney é muito importante para gente. Queremos levar de uma forma mais leve para poder fazer com que o assunto seja discutido e pensado. Que não seja só tratar a violência a modo de reproduzi-la. É mostrar que a violência existe, assim como a felicidade. A Britney é muito forte neste sentido, ela não se deixa abalar, sabe?!

HG – A Britney vive um dilema amoroso muito grande com Abel pelo medo de contar a verdade para ele. Alguma vez isso se tornou um problema no seu campo amoroso na vida real?

GG –
Para mim isso nunca foi um problema e nem um empecilho. Eu, no meu posicionamento pessoal, nunca fui de dizer sobre [a transsexualidade] de cara. Eu entendo a Britney, isso é uma particularidade da vida pessoal dela. Ela tá ali como pessoa jovem querendo se proteger e se defender, uma vez que é direito dela, sim, fazer isso. Comigo, na hora ‘H’ sempre tudo deu certo, o que importa é o tesão, o sentimento e a paixão. No caso do Abel e da Britney acho que vai prevalecer o amor.

HG – Britney e Abel caíram no gosto do povo e já tem muitas pessoas torcendo por eles. Em um Brasil tão transfóbico como o nosso, o que você acha que fez o público se apaixonar pelos dois?

GG – Acho que é esse carinho e inocência entre eles. O Abel, apesar de ter esse traço que parece preconceituoso, na verdade eu sinto que ele é inocente, ainda é jovem, está tendo várias experiências na vida e se apaixona por essa moça, que também se apaixona por ele. Como foi tudo muito rápido e eles se entregaram depressa um para o outro, acho que só agora eles vão começar a ponderar de forma mais séria o relacionamento e a presença de um e do outro na vida. A Britney também é super inocente, ela começa ali achando que é só um galanteio e depois se percebe não apenas isso, mas que está apaixonada.

HG – O que a gente pode esperar do casal nos próximos capítulos?

GG – Vem muito romance, amizade e compreensão. Acho que a Britney e o Abel são personagens bem didáticos e com eles vamos aprender muitas coisas sobre a sociedade, vivências e um relacionamento construído baseado no amor e na amizade. O que especificamente vai acontecer daqui em diante eu ainda não sei, mas posso te dizer com certeza que vai emocionar muito o Brasil.

HG – Muito se discute sobre representatividade real na TV. A Britney vai na contramão das estatísticas e é graduada e tem um trabalho mais formal. Qual a importância que você enxerga em mostrar essa outra realidade em rede nacional, tanto para pessoas cis quanto para homens e mulheres trans?

GG –
É muito importante! Afinal de contas, o que mais tem no Brasil são pessoas trans capacitadas nas múltiplas áreas profissionais que existem. E existe um preconceito do mercado de trabalho com essas pessoas que é algo que vem da sociedade em si. Não tem nenhuma base, apenas preconceito puro. Quando uma novela aborda isso de uma maneira muito interessante, não apenas na questão da representatividade ao colocar uma atriz que é trans interpretando uma pessoa que também é, mas também mostrando essa pessoa trabalhando com outras profissões comuns que a sociedade acha que não é possível, mas que já está acontecendo há muito tempo.

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