[Alerta Gatilho!] Fernando Grostein Andrade fez um forte desabafo à revista Piauí, divulgado nesta quarta-feira (31). Em depoimento ao jornalista João Batista Jr, o cineasta revelou que já foi vítima de estupro e de abusos sexuais. Diretor do documentário “Quebrando o Tabu” e irmão de Luciano Huck, ele ainda falou sobre como a ascensão de Jair Bolsonaro ao poder alavancou os ataques e ameaças que têm recebido nos últimos anos, e que o levaram a se exilar no exterior.
Violência sexual
As marcas da homofobia na vida de Fernando remontam à época em que tinha 12 anos, quando passou a ver no cultivo de orquídeas uma forma de lidar com o luto da morte do pai, Mário de Andrade. Por conta de uma reportagem sobre isso no “SPTV”, o garoto passou a ser chamado de “florzinha” na escola, além de sofrer acusações sobre sua sexualidade – quando sequer tinha noção do que isso significava. Já aos 14 anos, ele foi vítima de um estupro em uma festa.
“Em seguida, fui estuprado pela primeira vez. Eu era um adolescente com traços bastante andróginos. Quando tinha 14 anos, durante uma festa em uma boate, homens me seguraram à força e penetraram meu ânus com o dedo. Desde então, passei a anular o meu modo de ser: empostava a voz, para fazê-la mais grossa, e me reprimia na hora de caminhar, para parecer mais masculino. Nas festas, evitava dançar, para não associarem meus modos com o que rejeitavam. Passei até a reproduzir falas machistas e homofóbicas, a fim de esconder minha verdadeira identidade”, declarou ele, lembrando como era cobrado para ser “macho” e forçar uma vida que não tinha. “Em resumo: a homofobia roubou toda a minha adolescência”, apontou.
A pressão ao redor também o levou a outras experiências sexuais difíceis, bem como novos abusos. “Na juventude, amigos me forçaram a transar com uma mulher que havia posado para a Playboy. Foi quando perdi a virgindade, aos 17 anos. A homofobia pode ser tão cruel que é capaz de tirar o direito de a pessoa ter sua primeira relação sexual de maneira privada, com quem deseja e escolheu de verdade. Aos 18 anos, sofri assédio sexual. Aos 20, vivendo sempre às escondidas e com medo, fui sequestrado por um garoto de programa. Aos 28, fui estuprado mais uma vez, porém sobre este episódio não consigo falar ainda”, afirmou.
O cineasta ainda recordou a dura perda de um amigo, que tirou a própria vida em decorrência do preconceito que o cercava. “Existem várias maneiras de matar um gay. Você pode matar um gay agredindo-o fisicamente ou tirando a dignidade dele, a ponto de não reconhecer seu próprio desejo como legítimo. Na adolescência, tive um grande amigo que também foi uma paixão. O máximo que conseguimos fazer foi nos masturbarmos um diante do outro, sem nos encostarmos. Depois de ejacular, apagamos a luz. Nunca mais tivemos coragem de falar nesse assunto. Às vezes, ele aparecia na minha casa sem avisar e ficava em silêncio. Poucos anos depois, meu amigo se matou. Não suportou a homofobia”, mencionou Andrade.
Ataques
Os ataques de cunho político entraram na vida de Fernando em 2011, quando ele lançou o documentário “Quebrando o Tabu” – produção que discute se usuários de drogas poderiam ser tratados pela medicina ao invés de serem presos e punidos. A página de divulgação do filme existe até hoje e tornou-se um veículo com mais de 21 milhões de seguidores, que trata de temas relacionados aos direitos humanos, racismo, feminismo, meio ambiente, entre outras coisas. Entretanto, isso também abriu portas para as ameaças.
“Recebi mensagens ameaçadoras de pessoas que sabiam meu endereço, os lugares que eu frequentava e até o nome da minha tartaruga. Em setembro de 2015, a página foi hackeada, removeram o acesso de todos os administradores e postaram nela a imagem de uma caveira e uma faca”, recordou ele. Já em 2017, Fernando se abriu sobre sua sexualidade com um vídeo no YouTube, e a situação ficou cada vez pior: “Entre as mensagens violentas que recebi, uma delas defendia o meu espancamento para que eu aprendesse a ser homem”.
O ápice do ódio veio em 2018, meses antes das eleições presidenciais, quando Fernando recebeu uma grave ameaça de morte. “Recebi via Facebook o seguinte recado: eu devia parar de falar de política, caso contrário o meu velório precisaria ser com o caixão lacrado. A mensagem não dizia de que modo me matariam, mas o recado era bem claro. Fiquei apavorado. Não era uma mensagem isolada: somava-se a uma longa série de acusações, perseguições e apagamentos”, observou.
Grostein chegou a recorrer a conselhos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que acabou o colocando em contato com um advogado. O especialista, por sua vez, o alertou sobre o delicado cenário sociopolítico do Brasil. “O advogado me explicou que havia setores da polícia e do Poder Judiciário comprometidos com a ideologia das pessoas que estavam me intimidando. E que eu não estaria em segurança no Brasil a não ser que ficasse de boca fechada. Resolvi acatar a sugestão do advogado e avisei minha família que iria me mudar do Brasil”, lembrou ele, sobre quando decidiu mudar-se para a Califórnia.
Casamento
Hoje, aos 41 anos, o cineasta encontrou um refúgio através de seu casamento com o ator Fernando Siqueira, além de uma maneira de aprender mais sobre si mesmo. “Conheci meu marido em 2016, pelo aplicativo de encontros Tinder. No começo da nossa relação, tínhamos o hábito de ir ao Parque Ibirapuera, deitar no gramado e passar horas conversando, enquanto olhávamos a copa das árvores. Fernando me ensinou muito. Ele é um gay que não tem culpa de ser quem é, sente orgulho de sua condição e está movido pela alegria de viver. Tenho o privilégio de tê-lo ao meu lado e agora como parceiro na direção em um filme. Ele me ensina o valor da leveza e me puxa em direção à luz”, elogiou Andrade.
A diferença de idade entre os dois também fez com que Fernando enxergasse as coisas através de um novo ângulo. “Eu tenho 41 anos e sinto que a turma do meu marido, de 24 anos, tem outra mentalidade. Os colegas heterossexuais dele têm amigos gays, e está tudo bem assim. Os da minha geração viveram com a suspeita de que, quando um homem olhava outro homem, ele estava se arriscando a tomar uma surra. Os homens da geração do Fernando em geral se sentem lisonjeados por serem paquerados, não importa o gênero da pessoa. Há mais respeito pelo que é diferente. Elogios à beleza são palavras de afeto e não agressão”, destacou.
Nos contrastes, o casal pôde encontrar sua união e o fio que os liga. “Eu amo Caetano Veloso. Fê prefere Taylor Swift. Fazemos, então, batalhas com as nossas playlists. Recentemente, compramos um piano velho, e ele começou a cantar. Dedicamos muitas horas à leitura das partituras e ao aprendizado das melodias. Juntos, vamos criar um duo musical – acho que vamos chamá-lo de fes2, aproveitando que s2 significa coração na internet. Pretendo dar um tempo de filmes pesados”, afirmou.
Filme sobre Bolsonaro
Diante de um sentimento de culpa por ter deixado o Brasil, Fernando decidiu voltar a fazer cinema, com um documentário sobre a vida de Jair Bolsonaro. “Entrevistas foram feitas em Eldorado, no interior paulista, a cidade natal de Bolsonaro, no Rio de Janeiro e em Brasília. Ocorre que o resultado ficou inassistível. Eram tantos descalabros, que a primeira edição do documentário causou forte repulsa em quem viu”, descreveu ele.
A solução, então, veio a partir de uma única cena leve da produção, na qual Grostein recorria a um recurso bastante antigo: as florzinhas. “Aparecia contando como desenvolvi, aos 10 anos, o hábito de cultivar orquídeas para superar um luto”, disse o cineasta. Para tentar diminuir a “repulsa”, todos sugeriram mais momentos assim, que se opusessem a traços de “masculinidade tóxica” que enxergavam no presidente.
Após um colapso nervoso, Fernando recebeu a ajuda do marido e fez uma mudança total na estrutura de seu documentário. “Assim, o filme passou a ser sobre a minha história de vida, entrecortada pela trajetória de Bolsonaro, ou seja, misturando flores e amor com armas e balas. Praticamente joguei fora a montagem que tinha feito antes. Mudamos o título do filme, e o documentário passou a ser dirigido por mim e por Fernando”, esclareceu ele. Agora, o longa se chamará “Quebrando Mitos”, e estreia em 13 de setembro no canal do cineasta no YouTube.
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Depois das marcas da violência, ataques e a rotina com o medo, Fernando se sente pronto para alimentar discussões primordiais no Brasil. “Deixei o Brasil por ter medo. Esse sentimento, porém, não me paralisou nem me calou. Nunca deixarei de chamar a atenção para as questões mais pertinentes, como a própria sobrevivência da comunidade gay. No filme Quebrando Mitos, tomei a decisão de abrir minha vida e revelar minhas vulnerabilidades com o objetivo de despertar a discussão entre gays e seus familiares. A homofobia silencia, apaga e mata. O amor, o acolhimento nos faz mais fortes para enfrentar qualquer tempestade, que, assim como esse governo, vai passar. E voltar ao Brasil sem me sentir ameaçado”, encerrou.
Leia o depoimento na íntegra, clicando aqui.
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