Em um vídeo divulgado nessa terça-feira (05), Lima Duarte, de 90 anos, deixou uma mensagem emocionante para Flávio Migliaccio, que foi encontrado morto na manhã de segunda-feira (04). Na gravação, Lima desabafou sobre entender a decisão do colega de profissão de querer abandonar esse mundo e relembrou a história dos dois.
“Eu te entendo, Migliaccio, eu te entendo. Porque eu, como você, sou do Teatro de Arena, com Paulo José, Chico de Assis, com o (Gianfrancesco) Guarnieri. Foi lá que aprendemos com o (Augusto) Boal que era preciso, era urgente que se pusesse o brasileiro em cena. Num Brasil dominado por essa interpretação de consumo, posto que éramos uma colônia cultural. Somos ainda. Era urgente que se pusesse o homem brasileiro em cena, com o seu falar, com o seu sentir, com o seu jeitão”, iniciou o ator da Globo.
Lima afirmou que ele e Flávio conseguiram seguir os ensinamentos do teatro. “A alma brasileira, você foi um mestre. Você conseguiu colocar e eu também. Colocamos em cena o homem brasileiro. Foi linda essa viagem, essa aventura foi espetacular. Nos dedicamos a isso com denodo, com ardor, com paixão. Colocar a alma brasileira em cena. Nós conseguimos isso no Teatro de Arena. Foi lindo”, declarou.
O artista continuou, relembrando o que eles tiveram que enfrentar durante a Ditadura Militar, de 1964 a 1985, período em que muitas artes foram silenciadas. “Depois veio, e é por isso que eu te entendo, 64. Pouco depois de 64 nós ficávamos ali na escada da rua Tupi, que tem até hoje, esperando a veraneio que viria nos buscar. Um carro daquela época. E um dia virou um direita ali na esquina da Tupi, encostou, eu disse: ‘É a minha’. E os outros disseram: ‘É isso, Lima, vieram buscar o Alicrenes'”, citou ele, falando sobre seu nome de batismo, Ariclenes Venâncio Martins.
“Esse momento tem uma coisa de tumor, fundo e úmido, quando eu tive que me virar pro Dionísio (Azevedo) e dizer: ‘Vai lá em casa e avisa que eles vieram me buscar. Diz pras minhas meninas que o papai volta’. E acompanhei os senhores até o DOPS, onde hoje é a cracolândia. Aí quando entrei numa sala sombria, ali no sofá à direita [tinham] dois cavalheiros sentados: (Romeu) Tuma e assistente do delegado Fleury. Estavam ali os dois e se perguntavam quem eu era. E eu fui prestar o meu depoimento. Minha história lá é outra, que oportunamente eu conto pra vocês…”, completou.
Foi aquele tempo sombrio que marcou Duarte. “Por isso, por ter vivido esse momento, por ter pertencido à lenda, eu digo que eu te entendo. Eu te entendo, Migliaccio”, afirmou, no vídeo. “Agora, quando sentimos o hálito putrefato de 64, o bafio terrível de 68, agora, 56 anos depois, eu tenho 90, você com 85, quando eles promovem a devastação dos velhos, não podemos mais. Eu não tive a coragem que você teve”, lamentou.
Lima finalizou com uma esperança de reencontro com Migliaccio no futuro e com uma mensagem para os jovens de hoje. “Você me espera, meu amigo. Eu vou logo. Eu vou me encontrar com Boal, com você e vamos nos encontrar pra aquelas piadas horrorosas que você contaria, que o Chico de Assis apontava. Nos encontramos logo. Pros que ficam, eu quero lembrar uma das falas de Pedro Jáqueras em ‘Os Fuzis da Mãe Carrar’, ‘Os que lavam as mãos, o fazem numa bacia de sangue'”, concluiu.
Assista:
https://www.youtube.com/watch?v=8hM0k1RhHlA&feature=emb_title
O ator Flávio Migliaccio foi encontrado morto na manhã de segunda-feira (04), em seu sítio em Rio Bonito, no Rio de Janeiro. A informação foi confirmada pelo 35º Batalhão de Polícia Militar do estado, que fez um boletim de ocorrência do caso, apontando a causa da morte como suicídio. Ele deixou uma carta para os familiares.
Nessa terça (05), seu filho, Marcelo, também escreveu um texto emocionante sobre a partida do pai. “Meu pai fez o que fez à nossa revelia. Pegou um táxi e foi para o sítio enquanto eu cuidava da minha mãe no último domingo. Sem nos avisar, sem se despedir. Ele sempre me dizia que não aguentava mais viver num mundo como esse e sentir seu corpo deteriorar-se rapidamente e irreversivelmente pela idade avançada. Pouco escutava e enxergava. ‘Daqui para frente só vai piorar’, ele me dizia enquanto eu buscava todos os argumentos possíveis para lhe mostrar que ainda havia muita coisa boa reservada para ele. Como o prêmio de melhor ator de televisão de 2019, que incrivelmente ele ganhou aos 84 anos de idade. Ou como ver no cinema, o documentário sobre sua vida e sua carreira que estamos preparando para breve”, pontuou.
“Mas meu pai tinha uma inteligência enorme e era difícil demovê-lo de alguma coisa em que acreditasse. Infelizmente, ele agora é para nós só uma imensa saudade e lembranças maravilhosas. Lembranças de alguém que me ensinou o que é amar um ofício. Alguém que me mostrou a magia da criatividade. Me fez ver que a maior prova de amor que se pode dar a uma pessoa é respeitar suas convicções, suas decisões, seu jeito de ser e de não ser”, completou o jornalista.