Especialista em aviação questiona edição da Globo em reportagem sobre acidente e detalha bastidores com Caco Barcellos

Lito Souza explicou que, em nenhum momento, falou sobre o acidente de Vinhedo em específico, e expôs alerta feito ao jornalista da Globo

O piloto e mecânico de avião Lito Sousa se manifestou nesta quinta-feira (15) sobre a entrevista que deu ao “Profissão Repórter” desta semana. No programa da TV Globo, dedicado ao acidente aéreo em Vinhedo, que deixou 62 pessoas mortas, foi exibida uma conversa com o especialista. Entretanto, Lito revelou que trechos importantes foram cortados na edição.

Um dos pontos abordados na matéria foram as hipóteses do que pode ter causado a tragédia. Lito, porém, afirmou que sua explicação a respeito de falha nos mecanismos e manobras para a retirada do gelo das asas foi apenas para fins educativos. Segundo o especialista, ele não falou diretamente sobre o que teria acontecido no caso de Vinhedo, por mais que a reportagem tenha dado a impressão.

Para ficar bem claro, pois foi cortado da minha entrevista. Não falei de hipótese alguma no acidente, e sim, respondi ao que o repórter me perguntou sobre o que o gelo causa no avião. Inclusive, fiz um disclaimer que a explicação era para fins educativos e não tinha qualquer relação com o acidente de Vinhedo, porém tudo isso foi cortado na edição do ‘Profissão Repórter’“, escreveu ele em postagem no Instagram.

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Em entrevista ao hugogloss.com, Lito contou como foi a participação na atração e o que realmente falou em seu depoimento. “O Caco Barcellos chegou, foram três horas de gravação, e em determinado momento, ele pergunta sobre o que o gelo causa no avião, aí eu falei: ‘Olha, eu vou falar de maneira instrutiva, mas eu quero deixar claro que isto não tem nada a ver com o acidente’. Aí eu explico o que o gelo causa no avião, eu falo sobre quatro forças que atuam no avião, essa parte foi cortada, e aí só entrou a parte do vídeo“, afirmou ele.

De acordo com Lito, ele repetiu por diversas vezes, que não estava abordando o caso de Vinhedo, e avisou a equipe de Caco no uso de suas declarações, mas ainda assim os alertas foram em vão. O profissional também reclamou que um comentário feito em “off” foi usado sem seu consentimento. “Quando eu falo da falência dos órgãos, logo em seguida eu falo para o Caco: ‘Vamos falar isso em off que eu não me sinto bem falando disso’. Isso também foi ignorado e entrou no ar”, apontou. 

Na matéria da Globo, também foi exibida a fala de uma testemunha que disse ter visto uma das vítimas ainda com vida após a queda. O especialista, no entanto, contou que este trecho não foi mostrado a ele antes da entrevista. “Eu acho que seria mais ético se pelo menos tivesse sido informado para mim que alguém disse que viu uma pessoa viva. Aí eu teria dito: ‘Não, isso seria impossível pela característica do acidente’. E não teria completado as outras coisas que foram faladas em off. Mas eu não acho pertinente, assim… Bom, pelo menos eles ouviram dois lados, mesmo sem informar”, declarou.

“As testemunhas oculares de acidentes aéreos costumam inserir contexto baseado numa experiência anterior. E isto eu também falei para o Caco Barcellos, que testemunhas oculares de acidentes aéreos normalmente não têm um peso relevante na investigação, porque as pessoas enxergam coisas que não existem”, explicou.

Lito ainda ressaltou que acredita que um limite de ética está sendo quebrado com a maneira como a mídia vem cobrindo o acidente. “Eu acho que as pessoas, que os veículos, deveriam ter um pouquinho mais de consideração, inclusive com as famílias”, destacou.

Por fim, ele explicou que as gravações do avião divulgadas pelo Jornal Nacional nesta quarta-feira (14) são informações confidenciais e que, por enquanto, não acrescentam nada à compreensão do caso.

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Confira a íntegra:

HG: Você afirmou que a sua fala no “Profissão Repórter” foi cortada e editada. O que você realmente disse ao programa? Como foi a conversa com Caco Barcellos?

Lito: A gente foi convidado no dia dos pais, no domingo, e obviamente eu não iria dar entrevista pra ninguém no dia dos pais, mas era o Caco Barcellos, que é uma pessoa que eu admiro muito como repórter. E aí eu abri uma exceção, mas isso eu coloquei até no stories, a gravação que a gente estava conversando com a produtora deles, com a direção, sei lá com quem, e falando: ‘Olha, eu não especulo sobre acidente, eu posso falar de maneira, como se fosse uma instrução assim, dando informações técnicas, mas eu quero fazer um disclaimer que isso não tem nada a ver com o acidente’.

E assim eles concordaram. O Caco Barcellos chegou, foram três horas de gravação, e em determinados momentos, ele pergunta sobre o quê que o gelo causa no avião, aí eu falei: ‘Olha, eu vou falar de maneira instrutiva, mas eu quero deixar claro que isto não tem nada a ver com o acidente’. Aí eu explico o que que o gelo causa no avião, eu falo sobre quatro forças que atuam no avião, essa parte foi cortada, e aí só entrou a parte assim, que é o que está no vídeo lá falando, a primeira coisa que acontece é isso, a segunda coisa que acontece é isso, mas isso fica sem sentido sem a primeira parte, e no final dessa minha explicação sobre o quê que o gelo faz no avião, eu termino dizendo, novamente, que isto não tem nenhuma relação com o acidente, somente o CENIPA após a investigação pode dizer se houve influência do gelo no avião ou não.

Então isto foi o que foi falado durante essas três horas de entrevista. A outra coisa que foi usada, é a parte que eu não sabia da informação que ele tinha de testemunha que viu uma pessoa viva no avião, isso não me foi falado. Aí ele me pergunta se existiria a chance de uma pessoa sobreviver, eu sem saber do que tinha sido falado antes, eu afirmei o que eu falo que apareceu lá. Só que quando eu falo da falência dos órgãos, logo em seguida, eu falo para ele: ‘Vamos falar isso em off que eu não me sinto bem falando disso’. Isso também foi ignorado e entrou no ar essa parte aí.

HG: O programa trouxe o depoimento de uma testemunha que diz ter visto uma pessoa ainda com vida próximo aos destroços, o que é sabido ser impossível. O que você acha desse tipo de escolha para uma reportagem do tema?

Lito: Eu não tenho como julgar o conteúdo editorial que eles optaram por mostrar. Eu não sei se o Caco Barcellos tem o poder de direção ou se direção e edição conseguem mudar toda uma pauta. Então, eu não tenho capacidade de julgar. Mas eu acho que seria mais ético se pelo menos tivesse sido informado para mim que alguém disse que viu uma pessoa viva. Aí eu teria dito: ‘Não, isso seria impossível pela característica do acidente’. E não teria completado as outras coisas que foram faladas em off. Mas eu não acho pertinente, assim… Bom, pelo menos eles ouviram dois lados, mesmo sem informar.

Mas eu não acho muito interessante esse tipo de informação, porque no passado já aconteceu, naquele acidente do Eduardo Campos, de entrevistarem uma testemunha ocular e o cara dizer que viu os olhos do Eduardo Campos e reconheceu, sendo que foram fragmentos de seres humanos que foram encontrados naquele acidente e que só foram reconhecidos por DNA. Então, as testemunhas oculares de acidentes aéreos, elas costumam inserir contexto baseado numa experiência anterior. E isto eu também falei para o Caco Barcellos, que testemunhas oculares de acidentes aéreos normalmente não possuem a mesma relevância para a investigação, porque as pessoas enxergam coisas que não existem.

E até falei que no acidente do Eduardo Campos disseram várias testemunhas, foram mais de cinco testemunhas, que o avião caiu como uma bola de fogo. E depois que surgiu a imagem da câmera de segurança, todo mundo viu que não tinha bola de fogo nenhuma. O avião estava simplesmente mergulhando em direção ao solo. Então, isso foi o que eu disse também na entrevista, que testemunhas oculares devem ser… não ignoradas, mas não têm um peso relevante numa investigação de acidente aéreo, porque as pessoas costumam inserir elementos que não existem.

HG: Você, certamente, tem acompanhado toda a repercussão na mídia sobre o acidente. O que te chama mais atenção, a respeito de como esse assunto vem sendo abordado?

Lito: Eu estou vendo uma grande movimentação, assim, de uma ferocidade, eu diria, das pessoas querendo chegar a uma causa de um acidente, horas depois que ele aconteceu. E a mídia social tem amplificado isso, porque todo mundo critica as pessoas que entraram lá para filmar corpos pegando fogo, mas tem veículos usando isso para fazer reportagem. Então, eu considero que está sendo quebrado, assim, um limite de ética em como as coisas são reportadas.

Então, eu acho que as pessoas, que os veículos deveriam ter um pouquinho mais de consideração, inclusive com as famílias. Por exemplo, quando a gente pega aquela primeira parte da reportagem do Fantástico, a primeira parte é muito bonita ali, contando as histórias que foram interrompidas, só que a segunda parte é totalmente equivocada, usando danos estruturais do avião que aconteceram no passado, que não têm nenhuma relação com o que aconteceu no acidente e entre outras coisas.

Está ocorrendo uma mistura, e pelo fato do tema aviação ser um tema extremamente complexo para um jornalista entender, e os especialistas como eu que sabem como essas coisas acontecem, nós jamais vamos especular uma causa, e pela falta da nossa opinião sobre o negócio, os jornalistas estão criando as próprias opiniões e teorias e estão descambando para um lado que não é legal e não dá nenhuma segurança para ninguém.

HG: Nesta quarta, o “Jornal Nacional” revelou o conteúdo das gravações de voz da cabine. Segundo o jornal, passou apenas um minuto do momento em que a perda de altitude foi percebida até o avião cair no chão. Quais são as suas observações sobre essas novas informações?

Lito: As minhas observações sobre essas novas informações é que elas não acrescentam ainda nada à compreensão do caso. O CENIPA emitiu uma nota oficial que nenhum veículo teve acesso ao conteúdo de áudios ou descrição de caixas pretas. Então não tenho como avaliar, mas são pouquíssimas pessoas que têm acesso ao LABDATA, em que os dados são lidos. Nem mesmo a maioria dos investigadores tem acesso. 

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