Ex-autor de novelas da Globo expõe bastidores do canal com racismo, homofobia e falas absurdas de diretoria: ‘Faz dela, a preta burra’

Babi

Em um desabafo nas redes sociais, João Ximenes Braga, ex-autor de novelas da TV Globo, expôs situações de preconceito e LGBTQIA+fobia que teria presenciado nos bastidores dos folhetins da emissora. Co-autor de obras como “Babilônia”, de 2015, ele relatou, ainda, que sua carreira teria sido prejudicada por recusar imposições de pessoas importantes na empresa.

Sem citar nomes, João reproduziu um diálogo que teria acontecido durante a produção da novela das nove. “Faz dela, a preta burra“, teria exigido um dos diretores. “Não, isso não vou fazer“, teria rebatido o autor. “Foi a única insubordinação que tive. Não aceitei fazer essa nojeira. Daí, veio: ‘Ele te detesta porque você é politicamente correto’. O cara virou o todo poderoso de porra nenhuma“, disparou.

É sério, foram essas as palavras que ouvi: ‘Faz dela, a preta burra’. Isso era a orientação da diretoria da empresa. ‘Faz dela, a preta burra’. Isso era uma ordem. Eu me recusei a cumprir. Aí minha carreira acabou“, continuou ele. A última novela de João na Globo foi justamente “Babilônia”, obra de Gilberto Braga que ficou marcada como o maior fracasso do horário.

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As atrizes negras que compunham o elenco da novela eram Camila Pitanga, Juliana Alves, Sheron Menezes e Sabrina Nonata, mas não foi exposto qual delas teria sido alvo do pedido. Nos comentários, seguidores demonstraram indignação com o relato, e João prosseguiu abrindo o jogo sobre situações vexatórias às quais teria assistido.

Segundo ele, outras declarações de cunho racista seriam “rotina”. “Não pode contratar o ‘pretinho’ pra depois desistir do personagem“, teria dito alguém, além de usar o termo “a cota do Ximenes” para se referir a atores negros que participassem das produções. Nos bastidores de “Segundo Sol”, trama que se passava na Bahia e foi duramente criticada pela falta de negros no elenco, o pensamento seria de que “ninguém se importa de não ter preto na novela, as pessoas querem ver a Giovanna Antonelli“.

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João foi co-autor da novela assinada por Gilberto e Ricardo Linhares. (Foto: Globo/ João Miguel Júnior)

Um mandachuva da Globo teria dito ainda que “só gay se interessa por história de gay“. “O rosário de atrocidades que ouvi bicho, na boa. As pessoas precisam saber dessas coisas. Não dá pra aguentar esse tipo de gente se perpetuar no poder. Troço entalado na garganta há seis anos“, desabafou o autor.

Quando “Babilônia” foi ao ar, Silvio de Abreu era o chefe da Dramaturgia da emissora, cargo que cumpriu entre 2014 e 2020. No final do ano passado, a Globo decidiu passar a posição para José Luiz Villamarim. O período de transição ocorreu até março deste ano, quando o escritor de 78 deixou definitivamente o posto.

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Relação com Gilberto Braga

Amigo pessoal de longa data de Gilberto, João veio a público após a morte do veterano, no dia 26 de outubro, para esclarecer alguns pontos de sua carreira. Em declaração à jornalista Cristina Padiglione, do jornal Folha de S.Paulo, o autor contou como o fracasso de “Babilônia” afetou profundamente Braga, que tinha a esperança de conseguir reverter essa imagem com um novo trabalho.

Trabalhei com ele em cinco novelas (ele foi supervisor de ‘Lado a Lado’ e há uma outra de que falarei adiante) e uma minissérie. Não há homenagem que eu possa fazer que caiba em rede social. Quero falar de outra coisa. Em 2015, quando voltei da viagem de férias após ‘Babilônia’, ele me convocou à casa dele. Fui recebido no quarto, numa cama reclinável, tipo de hospital. Ele não estava bem de saúde, mas lúcido e muito deprimido com o fracasso de ‘Babilônia’, que até hoje é o pior ibope do horário“, afirmou o escritor, vencedor do Emmy Internacional por “Lado a Lado”, escrita com Cláudia Lages.

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Não ouso dizer que antecipasse sua morte, mas naquele dia me disse textualmente que não queria encerrar sua carreira com um fracasso e queria voltar a trabalhar logo para recuperar seu prestígio. Pode parecer irrelevante lembrar de um fracasso neste momento em que todos os homenageiam pelos sucessos. Mas superar esse fracasso era importante para ele“, contextualizou João.

Ele afirmou, ainda, que os problemas da novela das nove não tiveram relação com o autor. “Passaram-se seis anos e sinto a urgência de pôr os pingos nos is: o fracasso artístico e de audiência de ‘Babilônia’ não pode ser atribuído a Gilberto e sim à intervenção mal intencionada que destruiu completamente a espinha dorsal da novela“, apontou.

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Gilberto foi responsável por sucessos como “Paraíso Tropical” e “Vale Tudo”. (Foto: Globo/ Marcio Nunes)

No relato, João contou também que Gilberto tinha dois novos projetos. O primeiro seria uma minissérie sobre Elis Regina, que acabou ficando na gaveta por conta do filme “Elis”, que apareceu antes. A outra produção seria uma novela. “Ele queria revisitar ‘Brilhante’, que havia sido tão censurada pela ditadura militar que ficou incompreensível, e refazer a história como se deveria… A novela das onze passou a ser muito mais que um simples remake e ganhou outro título, ‘Intolerância’. Teve seus 60 capítulos escritos e entregues, mas foi sucessivamente adiada e por fim, cancelada, pelas mesmas forças que destruíram ‘Babilônia’“, detalhou.

Gilberto era resiliente. Mesmo diante disso tudo, não desistiu. Voltou a trabalhar – já sem mim – numa adaptação de ‘Feira das Vaidades’ para as 18h, com Denise Bandeira. Ele não queria, de forma alguma, encerrar sua carreira com o fracasso de ‘Babilônia’. Um fracasso que, repito e reforço, não pertencia a ele, mas ao interventor. Mas ‘Feira das Vaidades’ foi cancelada este ano, segundo ele me disse, porque diante da crise da pandemia a emissora não mais faria produções de época“, relatou João.

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A TV Globo teria encomendado uma nova novela das nove com Gilberto, que pensava em adaptar “Intolerância” para o horário. “A nova urgência que tenho é fazer um apelo público à TV Globo para que disponibilize os capítulos prontos de ‘Intolerância’. Se possível, até os cerca de 80 capítulos que escrevemos de ‘Babilônia’ antes da intervenção, pois a ‘Babilônia’ que vocês viram não chega aos pés da ‘Babilônia’ que concebemos. Pode ser num livro, no site do Memória Globo, ou uma simples doação à Biblioteca Nacional, para que fãs e pesquisadores possam conhecer a produção do Gilberto de 2015 para cá“, pediu ele.

Por fim, o escritor afirmou que essa seria uma homenagem importante para o veterano. “É o mínimo a fazer com a memória de Gilberto. E tenho certeza de que ele gostaria disso. Em seu último telefonema para mim, ele ainda insistia que queria fazer uma nova novela para não encerrar sua carreira com o fracasso que lhe foi imposto“, concluiu.