Neste domingo (16), o Fantástico localizou e conversou pela primeira vez com a família da menina que em 2020 comoveu o país. Na época, religiosos tentaram impedir que a criança de dez anos, violentada pelo tio, fizesse o aborto ao qual tinha direito por lei.
O caso aconteceu no Espírito Santo e a interrupção da gravidez da menina causou polêmica. Ela precisou entrar escondida no hospital para fazer o procedimento, que ela e a família queriam e que tinha todo o amparo da lei. A avó explicou que é ela quem tem a guarda da menina e a chama de filha. “Com certeza sou avó e mãe, porque eu peguei com 27 dias de nascida para mim. Para mim, é minha. Ninguém toma, que eu não deixo“, disse.
A menina hoje é uma adolescente de 14 anos. A família esconde a identidade por uma questão de segurança. Um tio da vítima relembrou quando eles tiveram a identidade invadida: “Nossa, destruiu a família toda, na verdade. Desmoronou toda a estrutura da família“.
A avó da jovem conta que, na época, teve a casa invadida por um desconhecido. “Ele disse: ‘Vim aqui dar uma palavra para a senhora, não pode fazer o aborto da sua filha’. Eu: ‘por quê?’. ‘Porque a senhora está pecando. Que a senhora está fazendo um negócio que Deus não gosta‘”, relatou. Na ocasião, a mulher disse que respondeu que a filha era dela e quem mandava nela era ela: “Então, se ela não quer seguir com a gestação, eu também não quero“. “Criança não pode ser mãe. Como é que uma criança vai ter uma criança? Não tem condição“, complementou o tio.
O tio que cometeu os estupros contra a menina continua preso. A avó afirmou que nunca suspeitou dele: “De jeito nenhum. O que aconteceu, eu fiquei de boca aberta. Eu nunca imaginava“. O estuprador usava de ameaças para manter a vítima calada. “Dizia que se ela falasse alguma coisa ia matar o pai dela. Ia me matar, ia matar o avô, os tios e principalmente a tia, que ela gostava muito, que era a mulher dele“, contou a avó.
O diretor do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), Olimpio Barbosa de Moraes Filho, foi quem atendeu a vítima capixaba, em 2020. Ele revelou que a menina não tinha noção da gravidez. “A avó percebeu — e percebeu dentro, abaixo de 20, de 22 semanas, 19 semanas. Mas ela foi obstruída de ter acesso ao serviço em Vitória, que, por norma técnica de lá, a conduta deles tem um limite de 22 semanas, mas não é a lei. A lei não proíbe acima de 22 semanas“, explicou Barbosa.
A advogada da família, Anna Luiza Sartorio Bacellar, falou sobre a descoberta e relembrou que a menina foi para um abrigo. “Foi uma descoberta tardia. Por ser uma menina, por ter medo das ameaças que estava sofrendo, ela não conhecia o seu corpo. Então ela foi levada pela família para o hospital da cidade. Naquele hospital, foi confirmada a gestação. Mas dali ela foi retirada da família“, disse a advogada. “Ela passou alguns dias em um abrigo. Após uma sentença judicial, é que ela foi levada para um hospital de referência e, na sequência, após ser negado o procedimento, ela foi levada para Pernambuco“, acrescentou.
O médico explicou que muitas vezes a vítima ultrapassa das 22 semanas de gestação pela falta de suporte do Estado em realizar o procedimento. “É um absurdo ela ser punida, porque ela já é punida. Ela já foi estuprada. Ela não quer continuar a gravidez. Não é por maldade que ela ultrapassa 22 semanas, é porque o Estado não oferece o abortamento no seu município“, declarou. Confira:
Relembre o caso
O caso teve início no dia 8 de agosto de 2020, quando a criança deu entrada no Hospital Estadual Roberto Silvares em São Mateus, no Espírito Santo, sentindo muitas dores. Os profissionais perceberam que a barriga da menina estava muito estufada, e ao receberem o resultado do exame de sangue, conseguiram confirmar que ela estava grávida de 20 semanas.
A garota, então, revelou que era estuprada pelo tio, de 33 anos, desde os seus 6 anos de idade. Ela nunca pediu ajuda ou o denunciou por conta das ameaças feitas pelo homem. Uma semana depois, a Justiça do Espírito Santo deu aval para a realização do aborto, de acordo com a legislação brasileira, que permite a interrupção da gravidez caso a mulher corra risco de morte ou tenha sofrido abusos sexuais.
No entanto, a vítima enfrentou um novo impeditivo ao não encontrar um hospital no Espírito Santo para a realização do procedimento. O Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes (Hucam), por exemplo, não possuía protocolo para isso devido ao avanço da gestação. Por isso, ela precisou ser levada a outro estado. A interrupção da gestação foi feita no dia 17 de agosto.
Na madrugada seguinte em que foi feito o aborto (18), entre 3h e 4h da manhã, o acusado de estuprar e engravidar a sobrinha de 10 anos foi preso, na cidade de Betim, em Minas Gerais.
Projeto de lei que equipara aborto a homicídio
O caso voltou a ser discutido porque, na última quarta-feira (12), os deputados decidiram, em 23 segundos, que o PL 1904/24 vai tramitar em regime de urgência. O projeto de lei equipara o aborto a homicídio após 22 semanas de gestação, mesmo em casos de gravidez derivada de estupro. De acordo com os termos, uma mulher estuprada, que interromper a gravidez após as 22 semanas, pegará uma pena de prisão maior que a do seu próprio estuprador.