Nesta segunda-feira (26), o jornal O Globo conversou com a mulher que ficou mantida por 17 anos em cárcere privado com os filhos, no Rio de Janeiro. Cinco meses após ser resgatada pela Polícia Militar em Guaratiba, ela relembrou a tragédia e falou sobre os planos atuais. A família passa por reabilitação em casa nova e os jovens, de 20 e 22 anos, devem voltar à escola em 2023.
Em julho deste ano, Luiz Antônio Santos Silva, conhecido como DJ – por colocar sons altos que abafavam os gritos das vítimas -, foi preso em flagrante ao prender sua ex-mulher e os filhos em um imóvel sujo e “largado”. Os familiares ficaram amarrados à cama de um quarto por quase duas décadas, sem acesso a nenhum tipo de notícia. Em conversa com o Globo, a mulher contou que uma de suas maiores surpresas depois de anos sem ver a luz do sol foi a morte de Michael Jackson.
“Morreu Michael Jackson! Eu era fã dele!”, disse ela, relembrando o seu espanto com a informação. A moça, que não teve seu nome revelado por segurança, também demonstrou surpresa com seu novo celular: “Também nunca tive um celular. Agora tenho um. Até faz fotos!”. O cenário surpreendente se deu pela época em que foi capturada. Em 2006, não havia iPhones e sequer WhatsApp. Assim, assistentes sociais e uma psicóloga da Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS) tiveram que explicar como funcionava o aplicativo, além de instalá-lo no dispositivo moderno da mulher.
Ela precisou atualizar rapidamente o seu conhecimento de mundo, tentando entender as mudanças repentinas – principalmente, as tecnológicas. “Eu só conhecia a TV de tubo, que havia quebrado desde que fomos para lá (Guaratiba). Ele (ex-companheiro) não mandou consertar. Não sabia que tinha televisão assim”, revelou apontando para uma TV Digital, doada por membros da família.
Para além da TV, ela também foi presenteada por parentes e pessoas sensibilizadas com a história com uma casa nova de dois quartos, sala, cozinha e banheiro. O dinheiro surgiu com uma “vaquinha”. Foram R$ 90 mil arrecadados, que garantiram inclusive alguns móveis na nova propriedade. No lugar dos colchões sujos e rasgados onde foram obrigados a dormir durante anos, agora há camas macias para cada um dos filhos.
Apesar das conquistas pós-trauma, sequelas se fizeram presentes. Os filhos foram encarcerados quando ainda eram muito pequenos, então, não conseguiram amadurecer de forma saudável. Seu corpo e mentalidade ainda são de crianças. A mais velha já havia sido diagnosticada com autismo, antes mesmo de ser aprisionada, enquanto o outro menino, até hoje, não descobriu sua condição. Ambos, segundo o Globo, vêm recebendo tratamento no hospital da Rede Sarah, indicado para neurorreabilitação, na Barra da Tijuca, na Zona Oeste do Rio.
A mulher relembrou como os problemas neurológicos de seus filhos afloraram conforme os dias em cárcere passavam. “Ele [o ex-marido] chamava as crianças de doentes mentais, passando a deixá-las amarradas à cama todo o tempo. Quando ele ia dormir, eu afrouxava as cordas para eles dormirem melhor, mas ele me batia ao perceber o que tinha feito. Havia dias que eles acordavam com as mãos inchadas de tanto que ele apertava. Ainda me acusava de as crianças serem doentes”, recordou.
Ela relatou que além das agressões, aconteciam constantes estupros. “Ele deixava as crianças amarradas na sala e me levava para o quarto. Não adiantava dizer que eu não queria. Falei que queria me separar e levar meus filhos comigo, mas a resposta era sempre a mesma: ‘Vou te matar se você me deixar”, expôs. A mulher chegou a desmaiar em um dos ataques agressivos do ex-companheiro: “Ele tentou me enforcar. Apertou meu pescoço mais de 10 vezes. Numa delas, cheguei a desmaiar. Ainda tinham as surras com fio nas crianças”.
Atualmente, Luiz Antônio segue preso. Porém, o medo ainda persiste na vida da mulher recém-liberta. “Ele sempre dizia que, caso eu fugisse ou o abandonasse, ele viria me matar. Eu vou ao supermercado e ninguém me reconhece. Melhor assim”, expressou ela, pedindo para que o jornal mantivesse seu endereço em segredo.
Felizmente hoje, a família pode usufruir de uma boa geladeira e um fogão em sua nova cozinha. Contudo, há alguns meses, o trio beirou a fome. Segundo ela, a comida era fracionada e, quando estava para acabar, só o então marido se alimentava. Eles já chegaram a ficar por quatro dias sem comer nada. Tanto a mãe quanto os filhos foram encontrados desnutridos, completamente abaixo do peso ideal. Nos últimos meses, todavia, cada um deles engordou de forma saudável. A filha, que estava pesando 27 Kg, dobrou de peso. Já o irmão, foi de 20Kg para 52 Kg. A mãe, de 53 Kg para 73 Kg.
Agora é vida nova. Com a ajuda de uma quarta pessoa especializada em casos do tipo, a mulher está criando seus filhos de forma digna, além de focar nos estudos. Ao O Globo, ela contou que deseja voltar a estudar, terminar o ensino médio e cursar enfermagem. Ela também busca por uma escola que seja apropriada às necessidades especiais de seus filhos para o ano que vem. No momento atual, a mulher recebe uma ajuda de custo de R$ 680, sendo metade dela, outra parte da filha, da Secretaria de Políticas e Promoção da Mulher, da prefeitura, por serem vítimas de violência doméstica. Outra assistência surgiu da SMAS, com o cartão do Auxílio Emergencial de Alimentação no valor de R$ 450 em parcela única.
A assistente social, Daniela Costa, diretora de um núcleo da SMAS na Zona Oeste, deu detalhes do que foi feito no caso: “Conhecemos essa família desde eles que saíram do hospital. Foi algo desafiador. Os filhos pegavam comida do chão, faziam as necessidades nas roupas e corriam de um lado para o outro. Era uma cena caótica. Fizemos uma ação emergencial com comida, roupas de cama, fraldas. Foi um grande desafio para todas nós”.