A Corregedoria Geral do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) afirmou hoje (18) que vai apurar a postura de um juiz da Vara de Família que menosprezou a Lei Maria da Penha e um caso de violência doméstica. As falas chocantes do magistrado foram expostas nesta quinta-feira (17), em uma reportagem do site Papo de Mãe, do UOL.
A postura inesperada aconteceu no último dia 9 de dezembro, em um audiência online referente à pensão alimentícia com guarda e visitas aos filhos menores de um ex-casal, numa Vara de Família de São Paulo. Estavam presentes também um promotor e duas advogadas, uma da mulher e outra do homem. Como o processo corre em segredo de justiça e inclui menores, os nomes dos envolvidos não foram divulgados.
Entretanto, é digno de nota que a mulher é vítima do ex-companheiro num inquérito de violência doméstica. Segundo a publicação, ela já precisou de medidas protetivas contra o homem por duas vezes, tendo sido acolhida Casa da Mulher Brasileira de São Paulo. Mesmo assim, o juiz disse não estar “nem aí” se houve “Lei Maria da Penha” no caso.
“Vamos devagar com o andor que o santo é de barro. Se tem lei Maria da Penha contra a mãe [sic], eu não tô nem aí. Uma coisa eu aprendi na vida de juiz: ninguém agride ninguém de graça”, disse ele. Uma advogada tentou responder, mas não obteve sucesso. “Eu não tô falando que esse de graça é porque a pessoa fez para provocar. De repente a pessoa que agrediu entende que a pessoa olhar pra ele de um jeito x é algo agressivo. Eu não sei o que passa na cabeça de cada um”, completou.
O magistrado também reclamou das denúncias feitas com respaldo na lei que pune a violência doméstica contra mulheres. Em seguida, ele até mesmo insinuou que poderia tirar da mulher a guarda de seus filhos. “Qualquer coisinha vira Lei Maria da Penha. É muito chato também, entende? Depõe muito contra quem… Eu já tirei guarda de mãe, e sem o menor constrangimento, que cerceou acesso de pai. Já tirei e posso fazer de novo”, sugeriu.
De acordo com o Papo de Mãe, o juiz também comentou que a mulher deveria reconsiderar a medida protetiva contra seu ex-marido – acusado de agredi-la. “Ah, mas tem a medida protetiva? Pois é, quando cabeça não pensa, corpo padece. Será que vale à pena ficar levando esse negócio pra frente? Será que vale à pena levar esse negócio de medida protetiva pra frente?”, questionou.
O magistrado ainda foi além, em outro trecho do vídeo divulgado pela reportagem. “Doutora, eu não sei de medida protetiva, não tô nem aí para medida protetiva e tô com raiva já de quem sabe dela. Eu não tô cuidando de medida protetiva”, disparou o juiz para a advogada. Mais adiante, ele ainda citou: “Quem batia não me interessa”.
O juiz referiu-se à mulher diversas vezes como “mãe” e “manhê”, e também insistiu numa reaproximação do “casal”, ignorando o histórico dos envolvidos. “Mãe, se São Pedro se redimiu, talvez o pai possa…”, comentou, quando ela respondeu: “Eu tenho medo”. Novamente, o magistrado voltou a diminuir o relato da mulher, insinuando que ela podia ter alguma culpa pelas agressões – o que em hipótese alguma é o caso. “Ele pode ser um figo podre, mas foi uma escolha sua e você não tem mais 12 anos”, devolveu ele.
Tribubal de Justiça de São Paulo se manifesta
Procurado pelo G1, o TJ-SP afirmou que está ciente do caso e que tomarão medidas cabíveis para averiguar a situação. “O Tribunal de Justiça de São Paulo informa que o corregedor-geral da Justiça, desembargador Ricardo Mair Anafe, tomou conhecimento na noite de ontem do ocorrido e, no mesmo instante, determinou a apuração do caso”, disse o órgão em nota.
Advogada fala sobre o caso
Gabriella Nicaretta, que é a advogada de defesa da mulher envolvida no processo, não deu detalhes sobre o caso, mas lamentou a maneira como mulheres são tratadas quando buscam seus direitos em instâncias que deveriam ajudá-las. “A mulher costuma ser revitimizada pelo sistema como um todo. E muitas vezes desiste de fazer a denúncia contra o seu agressor pela abordagem violenta dos agentes do estado”, afirmou.
OAB desaprova postura de juiz
A advogada Ana Amélia Camargos, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em São Paulo, opinou sobre o caso em entrevista ao G1, afirmando que o tratamento desrespeitoso dado pelo juiz não é comum entre magistrados. “Esse juiz representa uma exceção, que não deve servir de exemplo. E ao contrário, deve ser severamente punido”, analisou.
Ana Amélia também apontou que o machismo do juiz ficou claro na audiência. “Pensamento machista e reacionário”, classificou. “Ele acha as mulheres são objetos e que devem ser submissas a um homem. No caso, ao ex-marido da parte mulher. Ou seja, que a mulher não tem vontade própria, que a mulher não pode seguir o seu caminho, ser independente”, complementou a presidente da Comissão de Direitos Humanos.
Em nota ao G1, a OAB -SP comunicou que a Comissão de Direitos e Prerrogativas da Ordem pediu ao juiz que esclareça suas falas. “Oficiou o magistrado envolvido no fato, oportunizando-lhe manifestação nos autos do procedimento instaurado”, informou o comunicado. “Após as devidas e regulamentares apurações, serão adotadas medidas cabíveis e necessárias para salvaguarda dos direitos e prerrogativas da mulher advogada no episódio”.
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