A Polícia Civil do Rio de Janeiro iniciou, nesta terça-feira (1º), a “Operação Freedom” contra os “Guardiões do Crivella” — nome dado aos 300 assessores da prefeitura local, pagos para atrapalharem o trabalho da imprensa em portas de hospitais públicos. Denunciado pela TV Globo, a função do grupo é de acobertar a crise no sistema de saúde em tempos de pandemia, impedindo coberturas midiáticas e críticas ao governo do prefeito Marcelo Crivella.
Segundo o G1, nove mandados de busca e apreensão em endereços ligados a funcionários do esquema, exposto nesta segunda (31), foram expedidos pela juíza Soraya Pina Bastos, do Plantão Judiciário. Um dos alvos foi Marcos Paulo de Oliveira Luciano, o “ML” que aparece dando ordens em grupos de WhatsApp — os chats contam com participação de Crivella.
Junto de Marcos Paulo, agentes da Delegacia de Repressão as Ações Criminosas Organizadas e Inquéritos Especiais (Draco-IE) apreenderam notebooks, celular, cheques, dinheiro, contratos e um pacote escrito “Crivella”. “ML” e outras duas pessoas foram levadas até uma delegacia para prestarem esclarecimentos. Nenhum mandado de prisão foi feito.
Também durante a manhã, foi instaurada pelo Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) uma investigação sobre possível prática de três crimes no esquema. O inquérito aberto na Draco-IE investiga os “guardiões” por associação criminosa, atentado contra a segurança ou o funcionamento de serviços de utilidade pública e peculato — quando um servidor público usa a administração pública para o interesse privado.
De acordo com o delegado Willian Pena Junior, o próximo passo é ouvir a chefia de gabinete do prefeito para “saber até que ponto existia conhecimento por parte dele do esquema montado”. “Vamos investigar isso de forma muito detalhada. Se no decorrer da investigação surgir algum indício de cometimento de crime por parte do prefeito, isso será enviado para o Ciaf (Coordenadoria de Investigação de Agentes com Foro da Polícia Civil) e para o Gaocrim (Grupo de Atuação Originária Criminal do MPRJ) e, de lá, eles darão continuidade ao que diz respeito ao prefeito”, emendou.
Diante do envolvimento no esquema, Crivella também será investigado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro por associação criminosa e prática de conduta criminosa. Além disso, o PSOL, por meio do vereador Tarcísio Motta, protocolou na Câmara um processo de impeachment contra o prefeito, e a vereadora Teresa Bergher (Cidadania) prometeu apresentar um pedido na Casa municipal para instaurar uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) sobre o caso.
Debandada do grupo
Ao longo da noite de segunda-feira (31) e da madrugada desta terça (1), vários dos “guardiões” deixaram o grupo de mensagens, onde eram estabelecidas as escalas de trabalho e publicadas imagens comprovando as intervenções feitas por eles. Em reportagem exibida pelo “Bom Dia Rio”, prints de uma conversa mostram que Marcos Paulo fez um alerta aos participantes: “Gente, não é para sair do grupo, nunca houve nada errado aqui”.
Entenda o caso
O telejornal RJ2, da Globo, exibiu uma matéria investigativa nesta segunda-feira (31) que deixou não apenas os cariocas revoltados, mas todos os brasileiros. A equipe jornalística descobriu que mais de 300 funcionários da prefeitura são pagos para agirem como “guardiões” de hospitais públicos na cidade do Rio de Janeiro. A função deles?! Impedir que sejam feitas reportagens denunciando todos os problemas que esses lugares têm enfrentado.
O noticiário começou a perceber um padrão durante muitas gravações feitas nas portas dos hospitais, em que sempre existe uma ou duas pessoas completamente descontroladas, que atrapalham as entrevistas e os textos dos repórteres aos gritos de “Globo lixo”, “Bolsomito” e “Bolsonaro”. Em um dos casos registrados, um homem chega a questionar por qual motivo um paciente estava reclamando na televisão, sendo que “está tudo indo bem e a prefeitura está trabalhando correto e bem (sic)”.
O trabalho de investigação do telejornal conseguiu levantar os dados de alguns funcionários que foram filmados em seus “postos de trabalho”, atacando os profissionais da imprensa. Um deles, identificado como José Robério Vicente Adeliano, funcionário público desde 2018 em “cargo especial” e com salário de mais R$ 3 mil, não conseguiu sequer responder perguntas básicas do repórter da Globo. “É aqui que você cumpre seu contrato de trabalho com a prefeitura? Você recebe salário da prefeitura para quê?”, questiona o jornalista. “Tá tudo tranquilo. Estamos aqui nos trabalhos, meu querido”, debochou o funcionário.
O “RJ2” conseguiu ter acesso a três grupos no WhatsApp que organizam todo o esquema de trabalho. Juntos, os chats “Guardiões do (prefeito Marcelo) Crivella”, “Assessoria Especial GBP (Gabinete do prefeito)” e “Plantão” reúnem juntos mais de 300 pessoas. Nas conversas, é organizado as escalas com os hospitais em que cada dupla ficará “acampada”. Para “bater o ponto”, os funcionários públicos registram selfies em frente aos prédios no horário exato que começam seus expedientes.
As conversas trazem registros fotográficos, principalmente das equipes jornalísticas da Globo, em frente aos hospitais tentando gravar matérias. “Pessoal, a Globo acabou de chegar, fiz a apuração. É sobre a morte da paciente que estava internada com tiro no pescoço”, tranquiliza um dos membros do grupo. A atuação dessas pessoas é bem simples: ficam próximos das equipes de reportagem, sempre com os celulares na mão registrando tudo, e quando julgam que a pauta é prejudicial para a gestão municipal, eles interferem.
Porém, nem sempre as coisas funcionam como é o esperado pela administração dos “guardiões do Crivella”. Uma matéria da Globo foi feita sem interrupção, e no chat, um homem identificado como ML fica revoltado com a situação. “A Globo está no [hospital] Rocha [Faria]. Cadê a equipe do Rocha?”, pergunta o homem. Mais tarde, quando o link ao vivo foi transmitido, ML tirou um print e queixou-se: “Gente, muito triste, não derrubamos a matéria”.
A equipe conseguiu descobrir que ML é Marcos Paulo de Oliveira Luciano, ninguém menos que o assessor especial do gabinete do prefeito Crivella desde 2017, com salário superior a R$ 10 mil. “O sistema todo é chefiado pelo doutor Marco Luciano. Doutor Marco Luciano é um amigo do Crivella. É o chefão geral, tá? Não sei se ele é parente, se é da Igreja Universal, não sei, não, mas sei que ele é muito chegado. É uma pessoa de extrema confiança do prefeito Crivella”, revelou um dos “guardiões” que serviu como fonte da reportagem.
O informante ainda detalhou o ambiente de intimidação com as pessoas que fazem parte do esquema. “Todo tempo, ameaça é de demissão. Quando eles fazem reuniões com a equipe, ninguém pode entrar de celular e passam detectores de metal em cada funcionário e as reuniões são geralmente na prefeitura, e é muita ameaça”, entregou. O homem, que não quis ser identificado por motivos óbvios, explicou que esses cargos existem há oito meses, mas com o caos trazido pela pandemia do coronavírus, essas pessoas atuam diariamente. “Existe plantão nas unidades para poder cercear a imprensa”, completou.
Para a surpresa da produção do “RJ2”, o prefeito Marcelo Crivella foi identificado dentro de uma das listas de contato do grupo. “O prefeito, ele acompanha no grupo os relatórios e tem vezes que escreve lá: ‘Parabéns! Isso aí!'”, explicou a fonte do jornal.
Procurada pelo telejornal, a prefeitura respondeu em nota que “reforçou o atendimento em unidades de saúde municipais no sentido de melhor informar à população e evitar riscos à saúde pública, como, por exemplo, quando uma parte da imprensa veiculou que um hospital (no caso, o Albert Schweitzer) estava fechado, mas a unidade estava aberta para atendimento a quem precisava. A Prefeitura destaca que uma falsa informação pode levar pessoas necessitadas a não buscarem o tratamento onde ele é oferecido, causando riscos à saúde”.