O “Jornal Nacional” teve acesso ao depoimento de Ivanilson Fernandes dos Santos, um dos presos pela polícia do Rio de Janeiro, nesta segunda-feira (14). Ele, que é técnico de laboratório e era quem fazia os exames do PCS Lab Saleme, falou sobre o controle de qualidade da sorologia e revelou ter deixado de realizá-lo diariamente. O motivo, de acordo com Ivanilson, seria para reduzir custos do laboratório. O erro médico resultou na infecção por HIV de seis pacientes que receberam órgãos de doadores com o vírus.
Questionado sobre o assunto, Ivanilson informou que “até dezembro de 2023, realizava diariamente esse controle, que é necessário para evitar erros. E que a partir do início do ano de 2024, o controle de qualidade passou a ser semanal e de responsabilidade da coordenadora Adriana Vargas”.
A polícia, então, quis saber qual a diferença entre fazer esse procedimento diariamente ou uma vez por semana. O técnico de laboratório respondeu que podem “ocorrer erros, pois os reagentes ficam degradados por permanecerem muito tempo na máquina analítica (…) Que o controle é uma segurança da certeza do resultado e, por isso, deve ser diário”.
Ele acrescentou que acredita ter recebido ordens para não realizar mais os testes diários “por questão de economia dos kits reagentes, que são muito caros”. No depoimento, Ivanilson também relatou que “acreditava que tudo de errado ocorreria, e por isso estava pensando em se desligar”. Na última sexta-feira (11), ele foi desligado, recebendo aviso prévio.
Ao mencionar a decisão do laboratório, o preso contou que “quando houve mudança do controle de qualidade, Adriana Vargas disse que a ordem era para economizar porque estava tendo muitos gastos”. Conforme o JN, na semana passada, em um grupo de mensagens formado por pessoas que trabalhavam no PCS-Saleme, a coordenadora reagiu aos casos de infecção.
“Pessoal, o negócio foi feio. Me parece que um dos nossos técnicos, em janeiro e maio, liberou um resultado da central transplantadora errado, onde está dando no repórter contaminação de cinco pacientes. Estou apavorada. Me parece que esse mesmo técnico fez outra liberação em maio também. Não sei ainda tudo do ocorrido”, escreveu Adriana.
O secretário de Polícia Civil do Rio de Janeiro, Felipe Curi, atualizou os passos da investigação em uma coletiva. “As informações iniciais colhidas até o momento dão conta de que houve uma falha operacional de controle de qualidade nos testes aplicados ao diagnóstico de HIV. E tudo isso com o objetivo de obter lucro nessa questão dessas análises”, afirmou.
A outra pessoa presa foi o médico Walter Vieira, responsável técnico e um dos sócios do PCS-Saleme. Em documentos exibidos pela reportagem, foi ele quem assinou um dos laudos negativos de HIV, e que liberou para transplantes, os órgãos infectados.
Walter disse à polícia que a culpa por um dos resultados errados seria de Cleber de Oliveira Santos, coordenador de biologia do laboratório, que deveria ter checado o equipamento onde foram feitos os testes. Ele também teve a prisão decretada e está foragido.
O médico também se pronunciou sobre o segundo laudo com o falso negativo. Segundo ele, o técnico Ivanilson simplesmente teria digitado errado, o resultado. Walter disse ainda que o erro “não teria sido conferido pela funcionária Jaqueline Bacellar”, que assinou esse outro prontuário.
A mulher também teve a prisão decretada nesta segunda (14). O advogado dela disse que sua cliente vai se apresentar na delegacia nesta terça (15). Porém, antes de saber da ordem da Justiça, Jaqueline conversou com o repórter Bruno Grubbert. Ela disse que era uma funcionária burocrática do laboratório, e não biomédica, como consta no laudo. Jaqueline argumentou, ainda, que uma assinatura dela armazenada no sistema foi usada indevidamente.
Questionada sobre suas funções na clínica, ela respondeu: “Eu fazia conferência de estoque, realizava pedido de insumos, preenchimento de planilhas de uma maneira geral no laboratório. Quando é feito o nosso acesso ao sistema, era solicitado uma rubrica, para enviar uma foto de uma rubrica nossa para constar no sistema”.
O diploma de biomédica apresentado por Jacqueline não foi reconhecido pela Universidade Pitágoras Unopar Anhanguera. Ao g1, a instituição disse que não identificou o documento em seus registros. “A instituição não emitiu certificado de conclusão de curso de graduação, de qualquer natureza, para a Jacqueline Iris Bacellar de Assis“, declarou em nota. A funcionária é inscrita no Conselho Regional de Farmácia do Rio de Janeiro (CRF-RJ) como técnica de patologia clínica.
Segundo informações do g1, o número de registro no Conselho Regional de Biomedicina (CRBM) que consta no documento de Jaqueline pertence a outra pessoa. A verdadeira inscrita no registro é a biomédica Júlia Moraes de Oliveira Lima, que mora fora do Rio e não exerce mais a profissão.
Ainda ontem, a polícia também fez buscas em vários endereços. Na sede principal do PCS-Saleme, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, os agentes tiveram que arrombar a porta. Além dos exames da Central de Transplantes no estado do Rio, o mesmo laboratório era responsável por atender outras dez unidades de saúde da rede estadual.
Mais um caso de infecção por HIV
O dia 14 de outubro também foi marcado por uma nova denúncia de um erro grave do PCS. Em 2023, horas depois do parto, Tatiane Andrade recebeu o resultado errado de HIV positivo. De acordo com o JN, ela não pôde amamentar a filha, que ficou internada por um mês recebendo os remédios do protocolo anti-HIV.
“Foi desesperador. Ficava pensando: ‘Meu Deus, a minha filha foi tão planejada, que eu fiz todos os exames antes, durante, não aconteceu nada’. Era meu sonho amamentar, eu não podia amamentar a minha filha, secaram o meu leite”, lamentou a dona de casa. A denúncia, porém, foi feita apenas neste ano.
“Do nada, eu vi a reportagem e falei: ‘Meu Deus, é o laboratório que fez o meu exame errado’. Aí eu fiquei em choque”, confessou Tatiane. A direção do Neomater, onde a mulher teve a filha, declarou que o hospital ofereceu todos os esclarecimentos e acesso aos exames realizados.
A Secretaria de Saúde do Estado do Rio de Janeiro reiterou que PCS-Saleme não faz mais exames para o estado, e que criou uma comissão multidisciplinar para acolher os pacientes afetados. O laboratório, por sua vez, declarou que vai dar suporte médico e psicológico aos pacientes infectados assim que tiver acesso à identidade deles. Quanto ao caso de Tatiane, a clínica disse que o terceiro teste deu o resultado correto.
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