Desde que comprou e distribuiu 14 mil livros com temática LGBTQ+ na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, Felipe Neto e sua família vêm sofrendo perseguição. Nesta segunda-feira (16), o youtuber cancelou sua participação em um evento sobre educação e revelou ter sofrido ameaças de morte: “Já tirei minha mãe do Brasil”. Eita!
Através de seu Twitter, Felipe confirmou a informação do cancelamento aos seguidores. Segundo ele, os ataques têm se intensificado, o que o levou a tomar medidas drásticas. “Infelizmente a notícia é real. As ameaças se intensificaram e estamos montando um documento para dar entrada na polícia. Já tirei minha mãe do Brasil e estou vivendo com o mínimo possível de exposição”, escreveu ele.
Pouco mais tarde, Neto explicou qual a razão exata pela qual tirou a mãe do país. “Minha mãe teve que sair do Brasil, ficar longe de mim, devido a ameaças de morte direcionadas a mim e a ela”, compartilhou. Confira:
https://twitter.com/felipeneto/status/1173646812789563392?s=20
https://twitter.com/felipeneto/status/1173740099365953536?s=20
De acordo com o jornal O Globo, o influencer daria uma palestra sobre “Educação e a criatividade” nesta terça (17), em um evento organizado pelo jornal Extra e o próprio O Globo. No entanto, Felipe decidiu se preservar. “Desde a ação que promoveu contra a censura […] Felipe Neto vem recebendo todo tipo de ameaças. Diante do atual cenário e do risco iminente, que inclusive atinge aos seus familiares, o influenciador encontrou-se sem outra alternativa a não ser cancelar a sua participação”, disse sua assessoria em comunicado.
Ainda em nota, Neto pediu desculpas pelo cancelamento e lamentou por ter de tomar tal decisão. “É estarrecedor que no Brasil, em 2019, um indivíduo seja impossibilitado de se manifestar e lutar contra qualquer tipo de censura e opressão sem ser ameaçado”, desabafou.
Por fim, ele deixou seu recado de que, apesar da perseguição, não pretende interromper seus esforços. “Quero dizer que continuarei lutando, enfrentando o obscurantismo e a opressão, por todos os meios que me cabem, pela defesa do amor e da união até o fim, até onde for possível e até onde minhas forças e meu coração aguentarem”, finalizou ele. Que situação difícil!
Relembre o caso
A Bienal do Rio de Janeiro esteve no centro das atenções no início do mês, quando o prefeito carioca Marcelo Crivella publicou um vídeo em suas redes sociais, divulgando uma determinação de que a feira deveria recolher todos os exemplares da HQ “Vingadores: A Cruzada das Crianças” por ter “conteúdo sexual para menores”.
Pessoal, precisamos proteger as nossas crianças. Por isso, determinamos que os organizadores da Bienal recolhessem os livros com conteúdos impróprios para menores. Não é correto que elas tenham acesso precoce a assuntos que não estão de acordo com suas idades. pic.twitter.com/sFw82bqmOx
— Marcelo Crivella (@MCrivella) September 5, 2019
O conteúdo a que ele se referiu trata-se de um beijo entre dois personagens homens representado no miolo do quadrinho, de 264 páginas, que não é indicado a todos os públicos, como o prefeito fez acreditar. De acordo com a classificação indicativa da Marvel nos Estados Unidos, a HQ só pode ser lida a partir dos 13 anos. A edição é escrita pelo norte-americano Allan Heinberg e ilustrada pelo britânico Jim Cheung.
A prefeitura alegou que não se trataria de homofobia, mas sim do respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que recomenda que “publicações com cenas impróprias a crianças e adolescentes sejam comercializadas com lacre”. Entretanto, especialistas no estatuto apontaram ao UOL que o conteúdo não é considerado impróprio ou pornográfico. “Uma cena de beijo entre adolescente ou adultos, entre héteros ou homossexuais, não configura ato sexual ou pornográfico e não se enquadraria nesses crimes dispostos no ECA”, afirmou Ariel de Castro Alves, advogado e ex-conselheiro do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) e conselheiro do Condepe (Conselho Estadual dos Direitos Humanos de São Paulo).
Neste contexto, Felipe Neto decidiu distribuir gratuitamente 14 mil livros com temática LGBT durante o evento. As obras foram entregues dentro de um saco preto com o aviso “Esse livro é impróprio para pessoas atrasadas, retrógradas e preconceituosas”. A ação esgotou o estoque de produções desse tema na Bienal. Entre os títulos estavam “Arrase!”, de RuPaul; “Boy Erased”, de Garrard Conley; “Dois Garotos se Beijando”, de David Levithan; e “Ninguém Nasce Herói” de Eric Novello.
A notícia da ordem de apreensão repercutiu internacionalmente e foi repudiada por várias editoras e figuras públicas. Até o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), disse ao Estadão/Broadcast que não viu nada “de mais” no livro em quadrinhos. Para ele, em pleno século 21, é preciso ter uma “visão tolerante” de mundo. “É a visão dele, cada qual tire a sua conclusão. Quem sabe ele recolhe as TVs também. Estou cansado de ver beijo homossexual em novela”, ironizou Marco.
Ainda no dia 6, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro concedeu uma liminar à Bienal do Livro, impedindo a prefeitura de recolher qualquer publicação e de tirar a licença de funcionamento do evento. Logo no dia seguinte, a Folha de São Paulo colocou a imagem do livro em destaque como capa. “Crivella tenta censurar HQ com beijo gay, mas é barrado”, apontou na manchete.
Esta é capa da #Folha deste sábado (7). Acesse https://t.co/OUrEFevL3e para ler mais. #folha #folhadespaulo #fsp pic.twitter.com/wru197Gpzi
— Folha de S.Paulo (@folha) September 7, 2019
Pouco depois, no dia 7, a Prefeitura do Rio teve seu recurso aceito pelo presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. O desembargador Cláudio de Mello Tavares, então, suspendeu a liminar obtida pela organização da Bienal.
No entanto, passado um dia, no domingo (08), o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, suspendeu a liminar emitida pelo TJ-RJ que permitia a apreensão dos livros. A decisão atendeu a um pedido da então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que argumentou que a determinação do desembargador Tavares “feria frontalmente a igualdade, a liberdade de expressão artística e o direito à informação”, contidos na Constituição. Dodge ainda disse que houve uma “censura genérica”.