Hugo Gloss

Emicida DÁ A MAIOR AULA no ‘Domingão’ ao falar sobre racismo, pandemia do coronavírus e desigualdade social

Seja em suas canções ou nas suas entrevistas, Emicida é um cara que precisa ser escutado nesse país. Lembro que quando dos primeiros casos de coronavírus por aqui, ‘influencers’ escreveram e espalharam textos que diziam que com essa pandemia, ‘todos estariam no mesmo barco’, que as pessoas estariam em condições iguais… Enfim, uma balela de quem não sai da própria bolha e fica por aí ‘romantizando’ tragédias e desinformando pessoas.

Não, nós não estamos no mesmo barco. Nunca estivemos. E Emicida falou muito bem sobre isso ontem (14) em participação no “Domingão do Faustão”. “As mudanças que a gente precisa não estão ligadas ao coronavírus. A pandemia não é uma escolinha onde a gente está aqui parado aprendendo sobre a situação e como a gente é humano e precisa ajudar todos os outros seres humanos. Muito pelo contrário. O que eu acredito que a gente está vivendo é um paradoxo muito triste. Por um lado a gente enfrenta um vírus que se espalha muito rápido, mas não tem uma letalidade tão grande. O que é extremamente letal são os abismos sociais que a nossa sociedade produziu e finge que não existem. Todas as pessoas estão sujeitas a se contaminar, mas nem todas as pessoas podem se tratar após se contaminar“, pontuou o músico, antes de deixar um exemplo evidente.

Temos uma situação muito emblemática no Brasil que a primeira vítima do coronavírus é uma empregada doméstica que pegou o vírus de sua patroa, aparentemente. Isso é muito simbólico. As pessoas pobres se contaminam mais, têm menos condições de se cuidar e essa letalidade é amplificada não pelo vírus, mas pelos abismos sociais. O vírus não tem uma perseguição cultural atrás de quem é pobre, mas infelizmente, os abismos sociais impossibilitam que as pessoas mais pobres – que muitas vezes também são as pessoas pretas – venham a se recuperar dessa doença. Isso é desesperador“, destacou. Assista:

Racismo

No decorrer da conversa, Emicida abordou os atuais protestos contra o racismo nos EUA para nos lembrar de demandas urgentes do nosso próprio país. “A gente finge que esse é um problema de lugares como a África do Sul ou os Estados Unidos. O imaginário do brasileiro médio foi conduzido através de uma reflexão que faz ele acreditar que a gente vive de fato em uma democracia racial, o que não é verdade. E é por isso que quando uma nova geração emerge e traz à tona um discurso de que a gente vive um estado de desespero, de emergência e muito perigo. Quanto mais escura for a cor da sua pele, mais perigoso é. Essa tragédia que aconteceu com o George Floyd está fazendo o mundo inteiro fazer uma reflexão de como estruturalmente muitas pessoas corroboram com essa estrutura racista. Mas o Brasil tem emergências que precisam que ele se debruce sobre a sua realidade doméstica“, relacionou ele, citando em seguida dois casos recentes.

Estamos falando aqui uma semana depois de uma garota em Pernambuco abandonar uma criança no elevador e essa criança cair do nono andar e falecer. Isso é uma tragédia gigante. A gente precisa sim se perguntar por que uma pessoa em pleno gozo de sua faculdade mental abandona uma criança de cinco anos dentro de um elevador? Porque ela não consegue reconhecer nem a humanidade daquela criança e nem a necessidade de cuidado. Porque ela acha que esse cuidado são cuidados que ela deve ter com pessoas que se pareçam com ela. Esse é o grau de profundidade dessa questão. E há duas semanas atrás o menino João Pedro no Rio de Janeiro tomou um tiro nas costas e faleceu enquanto cumpria sua quarentena em casa. Um tiro que foi disparado por um policial. A nossa realidade tem situações tão ou mais desesperadoras. E precisamos nos levantar contra isso também“, declarou.

Violência Doméstica 

Faustão também levantou o tema da violência doméstica, apontando que as agressões contra mulheres aumentaram nesse período de isolamento social. O rapper discutiu a questão jogando luz também sobre a violência sofrida pelas mulheres trans. “Me recordo dos primeiros anos da minha vida que a gente morava num cortiço e tinha uma casa que era colada parede com parede. O marido agredia a mulher dia após dia e esse, inclusive, foi o motivo pelo qual fez a minha mãe mudar dali. Estou falando sobre os anos 80, mas a gente não pode agir como se isso não fizesse parte da realidade desse país nos dias de hoje. A violência contra a mulher, infelizmente, ainda faz parte da nossa realidade. Nesse momento que estamos reclusos, muitas mulheres estão trancadas com seus agressores. Mulheres trans também estão sendo vítimas dessa agressão e dessa violência doméstica. Tem projetos de lei para que elas também sejam protegidas pela Lei Mari da Penha“, comentou.

Trabalho Infantil

Na última semana, Emicida lançou nas plataformas de streaming, “Sementes”, uma canção que alerta sobre o trabalho infantil e sobre a importância de protegermos as nossas crianças. No programa, ele apontou como a pandemia tem inflado as taxas de trabalho infantil. “A gente já vem do ambiente econômico de muita retração, muitas pessoas estão sendo empurradas de maneira agressiva para as margens, tendo que se agarrar a qualquer coisa que apareça. Esse desespero está fazendo com que muitas famílias tenham que submeter crianças a jornadas de trabalho que são desgastantes, perigosas e insalubres até para os adultos“, reforçou.

Quarentena em Família e Masculinidade Tóxica

Pai de duas meninas, Teresa e Estela, e casado com Marina Santa Helena, Emicida contou como é conviver com as três em quarentena. “Isso não é uma novidade na minha vida.Tem essas três me dando ordem agora, mas quando morava com a minha mãe, tinha minha mãe, minhas irmãs e até os cachorros e gatos eram fêmeas, então sempre teve um monte de mulher me dando ordem. Está tudo certo, estou deixando a vida seguir como sempre“, se divertiu. Foi a deixa também para mais um tópico interessante, a chamada masculinidade tóxica.

Ao longo da vida fui percebendo que a gente também é muito sensível como homem, mas não podemos mostrar isso porque temos que alimentar aquela imagem de que o homem é machão, durão, não chora. A consequência disso é bem ruim. Acaba fazendo com que a gente tenha cargas de estresse gigantescas, faz com que a gente exploda de maneira violenta e gera várias outras cargas mentais. Como homens temos que nos relacionar melhor com a nossa sensibilidade, isso não é uma característica exclusiva das meninas“, explicou.

Ao final, Emicida agradeceu a Faustão pelo espaço concedido nesse que é o programa de entretenimento mais assistido da TV brasileira: “Queria aproveitar esse momento aqui para agradecer porque você tem compartilhado com o Brasil nesse momento tão difícil, conversas muito importantes. Essas conversas fazem a nossa cabeça ficar fervendo e pensar em tudo o que a gente tá atravessando. Eu acho que isso tem melhorado bastante o nível de muitas nossas conversas. Acredito muito nisso. É disso que a gente precisa. Fico muito grato pelo convite”. A gente também agradece aos dois e deixa a seguir o último álbum do músico. É uma verdadeira obra de arte para ouvir e seguir refletindo…

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