A reportagem da Folha de São Paulo divulgada nesta segunda (21), acusando a ministra Damares Alves de tentar interferir no caso da menina de 10 anos que fez um aborto, após ser estuprada por anos pelo próprio tio, teve um importante desdobramento. O Ministério Público pediu ao Tribunal de Contas da União que a pastora evangélica seja investigada por possivelmente ter violado o princípio constitucional de laicidade do país e deixar de cumprir sua responsabilidade para amparar a vítima.
O subprocurador geral, Lucas Rocha Furtado, tomou como base do pedido todas as alegações feitas pelo jornal. No levantamento feito pela Folha de São Paulo, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos coordenou uma operação nos bastidores que tinha como objetivo transferir a criança de São Mateus, município onde essa vivia no Espírito Santo, até um hospital em Jacareí, São Paulo. Na instituição, a garota capixaba aguardaria a evolução da gravidez e realizaria o parto, mesmo diante dos riscos que este implicaria à vida da vítima.
Sob ordens da ministra, aliados políticos se dirigiram ao Espírito Santo para tentarem retardar a realização do procedimento. Em uma série de reuniões, os representantes de Damares pressionaram os responsáveis por conduzirem a operação médica, chegando até a oferecer benefícios ao conselho tutelar local, caso o aborto não acontecesse.
Segundo o jornal, Alves teria participado de ao menos uma dessas conferências, por meio de chamada de vídeo. Além disso, pessoas envolvidas no processo afirmam que os representantes ministeriais teriam sido os responsáveis por vazar o nome da criança à extremista Sara Giromini — mais conhecida como Sara Winter — que divulgou dados pessoais da vítima nas redes sociais. A exposição fez da garota e sua família, alvos de ameaças.
A Folha teve acesso à peça assinada por Lucas Furtado, e nela consta o questionamento se a Administração Pública Federal não tem deixado que suas crenças religiosas pessoais afetem diretamente os atos oficiais. “O objetivo é que haja uma discussão. Não pode algo de tamanha importância ficar calado. A questão principal é a separação da religião do Estado. Afinal, a Constituição defende a laicidade. Defende que o Estado deve ser separado da religião para que todas sejam praticadas, ou eventualmente nenhuma, ou seja, liberdade total”, explicou o subprocurador em entrevista ao jornal.
Outro ponto que precisa ser avaliado com extrema cautela é a possível sugestão de Damares para que a gestação da menina de 10 anos continuasse. “Haveria ou não omissão do Estado, que deveria proteger uma menina, no caso? Não me parece correto o Ministério dos Direitos Humanos não defender a vítima, que é uma criança”, apontou Lucas no texto do pedido. “Para o Estado, tratando-se de procedimento permitido legalmente, o aborto realizado pela menina (…) não constituía ato a requerer qualquer intervenção, senão os necessários para a proteção da vítima”, acrescentou.
O subprocurador levantou a hipótese desses possíveis esforços para impedir o aborto serem uma forma de atender as convicções de Damares, que já se posicionou publicamente contra o procedimento. Inclusive, em uma entrevista recente no programa “Conversa com Bial”, Alves afirmou que não concordava que a menina tivesse feito o aborto. Para ela, o correto seria aguardar mais duas semanas para fazer uma antecipação do parto. “Poderia ter sido feita uma cirurgia cesárea nessa menina, tirar a criança, colocar numa incubadora. Se sobreviver, sobreviveu. Se não, teve uma morte digna”, alegou.
O aborto feito na criança foi autorizado pela Justiça, uma vez que cumpria duas das regras previstas no Código Penal. A garota foi vítima de estupro e corria risco de vida, caso continuasse com a gestação e ainda fosse parir. O Supremo Tribunal Federal também autoriza a interrupção de uma gravidez quando é diagnosticada a anencefalia do feto. Com a divulgação dos dados pessoais da menina, grupos religiosos chegaram a manifestar em frente ao hospital onde foi feito o procedimento. Por conta do vazamento dessas informações, a criança e sua responsável legal foram incluídas no Programa de Proteção a Testemunhas.
“O órgão público [o ministério] foi conduzido não de acordo com o que lhe impõe a Constituição e a lei, mas, sim, de acordo com as convicções morais e religiosas de sua dirigente, não só dificultando ato protegido pelo ordenamento jurídico, bem como favorecendo ocorrências que esse mesmo ordenamento jurídico procura evitar”, disse Lucas Furtado na representação.
Ministra se manifesta e acusa jornal de publicar fake news
Durante a manhã dessa segunda-feira (21), Damares utilizou sua conta no Twitter para rebater as declarações da Folha de São Paulo. “Novamente a Folha de SP publica mentiras sobre a minha atuação e o trabalho de nossos técnicos. Entraremos imediatamente com pedido de resposta. Mais uma vez faremos o departamento jurídico do jornal trabalhar. Deixamos claro que o tempo inteiro nossa atuação ocorreu para fortalecer a rede de proteção à criança em São Mateus. Oferecemos melhorar o Conselho Tutelar e até curso foi ministrado com esse objetivo. Não vamos deixar de trabalhar na defesa das crianças e adolescentes da cidade”, escreveu.
Deixamos claro que o tempo inteiro nossa atuação ocorreu para fortalecer a rede de proteção à criança em São Mateus. Oferecemos melhorar o Conselho Tutelar e até curso foi ministrado com esse objetivo. Não vamos deixar de trabalhar na defesa das crianças e adolescentes da cidade.
— Damares Alves (@DamaresAlves) September 21, 2020
Mariliz Pereira Jorge, repórter da Folha de SP, sugeriu que Damares se afastasse do cargo que exerce. “Ministra, um pedido de demissão seria o mais adequado. Usar a máquina do governo pra tentar subornar funcionários públicos e para assediar cidadãos é crime”, enfatizou.
“Essa acusação que você faz é grave. Tem provas? Testemunhas? Como isso seria feito, se estamos falando de um programa do Ministério que é efetivado a partir de emendas parlamentares? Terá que provar isso na Justiça a partir de agora. Espero que se retrate, cara militante”, devolveu a ministra.
Essa acusação que você faz é grave. Tem provas? Testemunhas? Como isso seria feito, se estamos falando de um programa do Ministério que é efetivado a partir de emendas parlamentares? Terá que provar isso na Justiça a partir de agora. Espero que se retrate, cara militante.
— Damares Alves (@DamaresAlves) September 21, 2020
Em seguida, a política também respondeu às críticas de Debora Diniz, colunista do jornal El País. “Passo a passo de como Damares abusou do poder público para impedir a menina de 10 anos de abortar: 1. Enviou equipe à cidade; 2. Sua equipe vazou o nome da menina à moça das tochas; 3. Oferta de vantagens ao Conselho Tutelar para agir conforme sua vontade”, enumerou a jornalista.
Mais uma vez, Damares alegou que as informações veiculadas pela publicação não eram verídicas. “1. Matéria desse jornal não é prova de absolutamente nada. 2. Equipe do Ministério vai a várias cidades para realizar o mesmo trabalho, em muitos, o abusado é um menino. 3. A Sra. faz acusações sem provas e terá que responder a isso na Justiça, dona Débora”, ameaçou.
1. Matéria desse jornal não é prova de absolutamente nada. 2. Equipe do Ministério vai a várias cidades para realizar o mesmo trabalho, em muitos o abusado é um menino. 3. A Sra. faz acusações sem provas e terá que responder a isso na Justiça, dona Débora. https://t.co/u79q7KofBS
— Damares Alves (@DamaresAlves) September 21, 2020
Caso de estupro chocou o país
O caso teve início no dia 8 de agosto, quando a criança deu entrada no Hospital Estadual Roberto Silvares em São Mateus, no Espírito Santo, sentindo muitas dores. Os profissionais perceberam que a barriga da menina estava muito estufada, e ao receberem o resultado do exame de sangue, conseguiram confirmar que ela estava grávida de 20 semanas, quase cinco meses.
A garota, então, revelou que era estuprada pelo tio, de 33 anos, desde os seus 6 anos de idade. Ela nunca pediu ajuda ou o denunciou por conta das ameaças feitas pelo homem. Uma semana depois, a Justiça do Espírito Santo deu aval para a realização do aborto, de acordo com a legislação brasileira, que permite a interrupção da gravidez caso a mulher corra risco de morte ou tenha sofrido abusos sexuais.
No entanto, a vítima enfrentou um novo impeditivo ao não encontrar um hospital no Espírito Santo para a realização do procedimento. O Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes (Hucam), por exemplo, não possuía protocolo para isso devido ao avanço da gestação. Por isso, ela precisou ser levada a outro estado. A interrupção da gestação foi feita no dia 17 de agosto.
O caso tão bárbaro e cruel comoveu e revoltou milhares de pessoas, incluindo os influenciadores Felipe Neto e Whindersson Nunes, que se ofereceram para ajudar a garotinha em seu futuro. O empresário carioca prometeu arcar com os estudos dela até concluir a faculdade, enquanto o youtuber piauiense afirmou que pagaria ajuda psicológica para a criança até os 18 anos.