O caso da criança catarinense de 11 anos impedida de realizar um aborto após um estupro tem um novo desdobramento. Em 24 de junho, um dia após a menina conseguir realizar o procedimento de forma legal, a promotora Mirela Dutra Alberton abriu uma investigação para apurar a “causa que levou à morte do feto”, mesmo que não haja crime no processo.
Segundo o The Intercept Brasil e o Portal Catarinas, Mirela pediu que os policiais buscassem os restos fetais no Instituto Geral de Perícias do Hospital da Universidade Federal de Santa Catarina, para realização de uma necropsia. O juiz José Adilson Bittencourt Junior, responsável pelo caso desde o afastamento de Joana Zimmer, não se opôs ao requerimento da promotora e liberou o conhecimento de informações médicas da paciente.
A reportagem teve acesso ao requerimento enviado a Giovani Eduardo Adriano, perito-geral da polícia científica de Santa Catarina. Com o título “urgente” em destaque, a promotora quer confirmar se houve a aplicação de cloreto de potássio para a parada dos batimentos cardíacos ainda no útero, ou seja, se foi realizada a assistolia fetal.
“No tocante ao requerimento de autorização para que o IGP possa buscar e efetuar necropsia do corpo de delito (feto), bem como o acesso do prontuário da paciente, não há óbice deste juízo, pois tais órgãos (MPSC e IGP) possuem competências que o autorizam a assim proceder”, afirma o juiz no despacho. Ainda, o Hospital Universitário foi intimado a encaminhar “toda a documentação e relatório médico detalhado sobre a realização do aborto em até 48 horas”.
A menina conseguiu realizar o aborto legal em 23 de junho. O procedimento foi feito por meio de medicamentos, de forma que o feto já saísse do útero sem batimentos cardíacos. “[Esse processo] Induz ao óbito do feto intra-útero para não ocorrer sofrimento”, explicou o médico obstetra Olímpio Moraes, professor da Universidade de Pernambuco e diretor do Cisam. De acordo com o profissional, em uma gestação de 22 a 24 semanas, a indução de assistolia fetal é sempre indicada.
O caso ganhou grande repercussão no país após uma reportagem do próprio The Intercept, que divulgou trechos do processo. Na audiência, a juíza Joana Zimmer chega a perguntar para a menina se ela suportaria continuar grávida “mais um pouquinho”, para aumentar a chance de sobrevida do feto. No mesmo dia, a promotora também tentou convencer a menina.
“Em vez de deixar ele morrer – porque já é um bebê, já é uma criança –, em vez de a gente tirar da tua barriga e ver ele morrendo e agonizando, é isso que acontece, porque o Brasil não concorda com a eutanásia, o Brasil não tem, não vai dar medicamento para ele…”, disse ela, que tem a conduta investigada pelo Conselho Nacional do Ministério Público.
Em nota, a polícia científica disse que não irá se pronunciar “até a finalização dos procedimentos médico-legais, devido às repercussões e por estar tramitando em segredo de justiça”. Segundo o comunicado, o resultado dos exames serão enviados, assim que possível, à vara criminal responsável.
O Conselho Regional de Medicina de Santa Catarina também afirmou que está apurando o caso, mas não poder fazer “manifestações públicas sobre o assunto, porque a apuração de qualquer caso envolvendo atuação médica ocorre de forma sigilosa no órgão“.
Já o Hospital Universitário da UFSC disse que “as informações confidenciais sobre o caso da menor apenas foram compartilhadas com órgãos que detêm poder requisitório previsto em lei, em autos sob sigilo e que se solidariza com a criança e seus familiares, bem como com a sua equipe assistencial”.
Segundo as fontes ouvidas pelo Intercept e pelo Portal Catarinas, a investigação de Mirela Dutra Alberton não tem fundamento na lei. “É um delírio, porque é uma excludente de ilicitude, não tem nenhum indício de crime. Ela está criando um crime na cabeça dela, de acordo com a orientação ideológica dela, contra a lei. Está violando o princípio da legalidade, que é o direito ao aborto legal”, disse a criminalista Marta Machado, professora da FGV São Paulo e pesquisadora da Afro Cebrap.
“Ela está instrumentalizando o Estado para perseguir um crime que não existe. Está claramente abusando do poder dela. Além disso, viola o direito à intimidade da menina”, pontuou. Questionada, a promotora não quis responder às perguntas sobre qual crime ela estaria apurando e quais seriam os possíveis suspeitos.
A constitucionalista Eloisa Machado, considera que a investigação após a garantia dos direitos da menina é grave: “Caso o sistema de Justiça continue perseguindo a menina e sua mãe pela busca do exercício regular de seu direito, teremos uma situação ainda mais grave. A tentativa de transformar o aborto legal, previsto em lei desde a década de 1940 em um crime de homicídio, é algo inconstitucional, inconvencional e ilegal”.
De acordo com ela, a atuação do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público no caso será decisiva. “Não só para promover uma devida responsabilização nesse caso, mas também para sinalizar para todo o sistema de Justiça que uma menina vítima de violência sexual que busca a interrupção da gestação tem que ter o seu direito garantido”, explicou.
Relembre o caso
Após ser vítima de um estupro, a menina descobriu que estava na 22ª semana de gravidez ao ser encaminhada ao hospital universitário em Florianópolis. A instituição, entretanto, se negou a realizar o procedimento. O Hospital da UFSC afirmou adotar como protocolo a interrupção apenas para gravidez de até 20 semanas, apesar da legislação não estipular prazos ou solicitar autorização judicial para o procedimento.
De acordo com a lei, o aborto é permitido nos casos em que a gravidez é decorrente de estupro ou quando apresenta risco à vida da gestante. Desde 2012, a partir de decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), a interrupção também é permitida no caso de diagnóstico de anencefalia do feto.
Após despacho da juíza Joana Ribeiro Zimmer, a menina passou a ser mantida em um abrigo, para evitar que fizesse um aborto autorizado em outra instituição. Somente no dia 21 de junho, a criança pôde voltar à casa da mãe. A defesa da família então entrou com um habeas corpus no Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) para realizar o procedimento de interrupção da gravidez.
A conduta da juíza está sendo investigada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Já o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) instaurou um procedimento para apurar a postura da promotora de Justiça Mirela Dutra Alberton no caso.