A tragédia do voo 820, da Varig, aconteceu em 11 de julho de 1973 e marcou a história. Cinquenta anos após o acidente, nesta quarta-feira (31), o único passageiro sobrevivente falou sobre o assunto. Ao UOL, o brasileiro Ricardo Trajano admitiu que até hoje questiona o ocorrido e revelou que ainda não se sabe a causa do acidente.
Naquele fatídico 11 de julho, o voo partiu de São Paulo, fez uma escala no Rio de Janeiro e não conseguiu pousar em Londres, seu destino final. Um incêndio em um dos banheiros da aeronave, já no fim do trajeto, encheu de fumaça o Boeing 707. Gilberto Araújo da Silva, comandante da aeronave, tentou realizar o pouso de emergência em Paris, mas o avião caiu em um campo de cebolas entre os vilarejos de Saussier e Saulx-les-Chartreux, no sul da França.
Entretanto, a essa altura, a maioria dos passageiros estava desmaiada por conta da inalação da fumaça. Segundo o histórico, dos 134 ocupantes da aeronave, divididos entre passageiros e tripulantes, 122 morreram. Dos 12 sobreviventes, 11 eram tripulantes e o único passageiro foi Trajano, que não entende como permaneceu vivo após o episódio.
“Por que só eu escapei? Na época, 123 pessoas morreram. Todos os outros passageiros e sete tripulantes não resistiram. Só sobreviveram os tripulantes e eu. Me sinto um cara privilegiado e agradeço todo dia o cara lá de cima”, declarou.
Hoje, aos 73 anos, o homem recorda detalhes das horas que antecederam a tragédia, bem como sua recuperação. Segundo ele, aquela foi a primeira vez que entrou em um avião com destino para fora do Brasil. “Eu tinha 21 anos e queria muito conhecer Londres. Fazia faculdade de engenharia, era músico e roqueiro. E, naquela época, as bandas de rock não vinham para a América do Sul, só tocavam na Europa e nos Estados Unidos. Então, fui atrás de um sonho. Antes, eu só tinha feito dois voos domésticos. Internacional, foi o primeiro da minha vida”, detalhou.
Horas antes do embarque, o então universitário chegou ao local para se “preparar” para a viagem. “Nunca tive medo de viajar de avião e nem superstição. Mas, tinha o conhecimento e meus amigos sempre me alertavam que o ideal era viajar na última fileira da aeronave caso ocorresse um desastre aéreo. Naquela época, os voos para o exterior eram sempre noturnos. Cheguei cedo porque queria escolher o meu lugar, na cauda do avião”, explicou Ricardo.
“Quando fui comprar a passagem, falei que queria a última poltrona do avião. Mas, fui alertado que não seria possível, pois naquela época a última fileira da aeronave era destinada à tripulação. Antigamente, 17 pessoas trabalhavam a bordo. Eram engenheiros, piloto, copiloto, comissários, chefe dos comissários e uma mulher que ficava fiscalizando se estava tudo correto no voo”, especificou. Trajano acabou ficando na última fileira da aeronave, ao lado de uma janela.
Cerca de cinco minutos antes do pouso em Paris, o passageiro notou que uma fumaça “fina e branca” estava vindo dos fundos da aeronave, próximo aos banheiros. Ele então se levantou e se dirigiu à dianteira do avião, onde foi orientado por um comissário a retornar ao seu lugar e colocar o cinto de segurança – ordem que foi ignorada pelo brasileiro.
Já próximo à cabine, Ricardo notou que dois comissários estavam apavorados, já que a fumaça havia tomado conta de todo o avião. “Virou uma câmara de gás. Me veio a sensação de morte e me despedi da vida. Foi tudo muito rápido. Comecei a pensar na minha família e amigos”, detalhou.
Nos minutos que antecederam a queda, o passageiro notou que o avião começou a inclinar. Tanto o piloto quanto o copiloto se deram conta de que não conseguiriam chegar ao aeroporto. “Só me lembro de cair no chão de bruços. Depois, acordei no hospital”, contou Trajano.
À beira da morte
Em um primeiro momento, foi noticiado que ninguém havia sobrevivido ao acidente, fazendo com que os familiares do brasileiro se desesperassem. “Todos já começaram a correr para ver meu velório e sepultamento, menos a minha mãe, pois ela acreditava que seu filho havia sobrevivido”, recordou.
Trajano foi encontrado num espaço destinado à tripulação e, por esse motivo, confundiu o resgate. “Em um primeiro momento, acharam que eu era um dos tripulantes. Depois, perceberam que eu era um passageiro e que fui o único deles que sobrevivi. Ligaram para minha família e pediram desculpas“, disse ele.
No hospital, o brasileiro chocou os médicos, já que sua condição era grave: além das queimaduras de terceiro grau, ele também apresentou um edema pulmonar generalizado que lhe fez tossir sangue. “Na primeira radiografia, os médicos olhavam o meu pulmão e perguntavam se a pessoa já tinha morrido. Eram unânimes em dizer que eu não duraria uma semana. Eu expelia sangue pela boca a todo instante. Foram dezenas de transfusões de sangue, meu estado era caótico. Mas, graças a Deus, na parte pulmonar não fiquei com sequelas”, detalhou.
A recuperação, apesar de complicada, teve apoio especial dos pais, revelou Trajano. “Eles não podiam entrar no CTI e a enfermeira me mostrava os cartazes. Eram frases simples do tipo: ‘Vamos lá, Ricardo!’, ‘Força Ricardo!’, ‘Ricardo, você vai sair logo daí!’. Elas me motivavam demais”, afirmou.
O então universitário também recebeu carinho de desconhecidos, através de cartas. “Eu recebia dezenas de cartas e, por incrível que pareça, a maioria era de pessoas que eu não conhecia, me mandando força, isso me ajudava muito também, eu lia e relia aquilo todos os dias, como se fosse uma bíblia”, contou.
Um ano e meio após a tragédia, em fevereiro de 1975, Ricardo decidiu viajar mais uma vez, por uma boa causa. “Viajei com um grande amigo, fui para Londres e depois fui a Paris, onde visitei toda a equipe do hospital que participou do meu tratamento. Foi muito emocionante”, disse ele.
Mesmo com o susto, o homem não ficou com trauma de voar e mantém contato com um dos outros sobreviventes. “Tenho contato até hoje com um comissário francês que também escapou. O nome dele é Alain Tercys. É sempre emocionante quando nos falamos”, confirmou.
Para eternizar a história, Trajano pretende publicar um livro, do qual já escreveu 13 capítulos. “Estou procurando uma editora, para ver se eu consigo lançar o livro, quanto antes”, finalizou.