No ar como Zuleica em “Pantanal“, a atriz Aline Borges sabe da importância de sua participação na novela global. Ao contrário da versão original da trama – em que Rosa Maria Murtinho interpretava sua personagem – todo o núcleo que participa é formado por atores negros. Em conversa com a revista Quem publicada hoje (13), a atriz discorreu sobre pautas sociais e representatividade tanto na arte quanto na vida real. Ela também revelou como lidava com essas questões na juventude, e momentos que foram decisivos para se entender enquanto uma mulher negra.
“Sou uma mulher preta não-retinta. Nesse país racista se você não tem a pele escura, as pessoas falam: ‘Você não é preta’. E você, para fugir do racismo, começa a negar sua identidade. ‘Não sou preta, realmente. Não quero ser preta’. Porque é muito ruim ser preto em um país racista“, desabafou.
“Quando você cresce em uma sociedade racista que nega seus traços, que nega o seu cabelo, que nega o seu nariz, que nega a sua existência, não tem como isso não ter reflexo na sua autoestima“, pontuou. A artista rememorou algumas atitudes de sua mãe: “Quando era criança, minha mãe botava pregador no meu nariz para que ele ficasse fino. Isso é uma violência que deixa marcas. Minha mãe não fazia isso sabendo que era uma violência. Ela não tinha consciência disso. (…) Durante muito tempo, minha mãe alisava o meu cabelo”.
Isso acabou deixando marcas na carioca. “Por muito tempo, eu passei guanidina [no cabelo]. Não podia ver crescer um dedo da raiz com meu cabelo original que eu já me negava, achava feio“, contou. Em seguida, ela acrescentou que, com 22 anos, quase operou o nariz para diminuí-lo. “Foi por muito pouco que não operei“, confessou Aline.
O racismo estrutural não trouxe marcas apenas autoinflingidas. No decorrer da conversa, Borges expôs a maneira como tratava seu irmão gêmeo durante a juventude. “Meu irmão gêmeo é negro retinto. A gente se separou na adolescência porque fui morar em outra cidade com outra irmã. Ela me pagava um colégio particular e eu a ajudava a cuidar da minha sobrinha, filha dela. Meu irmão permaneceu no Rio de Janeiro com a minha mãe e eu fui morar em Minas Gerais. Estudava em uma escola de classe média. Entrei na sala de aula e não tinha uma pessoa preta. As meninas da sala, patricinhas, vieram conversar comigo empolgadas. Disse que eu tinha um irmão gêmeo. Perguntaram se ele parecia comigo. Sim, ele parece comigo, mas tem a pele totalmente retinta e tem os traços mais negroides que os meus. Tinha 17 anos e tive vergonha de falar isso com as minhas amigas do colégio. Inventei um outro irmão“, revelou.
A atriz contou que mudou as características do irmão, contando que ele tinha olhos claros e o tom de pele parecido com o dela. “Inventei uma pessoa que não existia. Neguei o meu irmão gêmeo por ter vergonha da negritude dele, da nossa negritude. Isso é muito cruel“, lamentou. Ela também relembrou que passou o endereço errado do colégio para o garoto para que ele não fosse visto pelas suas colegas de escola.
A profissão a ajudou a perceber o mundo de outra forma. “Fiz o espetáculo ‘Contos Negros do Brasil’ há cinco anos. Foi na peça que descobri minha identidade de mulher preta. Até então, eu não sabia que eu era uma mulher preta”, afirmou. “Hoje, a parte do meu corpo que eu acho mais linda é o meu cabelo. Uso meu cabelo afro do jeito que ele é. Quanto mais cheio, mais eu me sinto bem. Eu me sinto bem ao me olhar no espelho e aceitar meu nariz“, completou.
Sua jornada no mundo artístico nem sempre foi fácil. Pouco antes de estrelar o filme “Alemão 2”, de 2022, ela e o marido – o ator Alex Nader – chegaram a cogitar participar de um reality show. “Nunca me imaginei entrando em um reality, muito menos um reality de casal. A gente estava passando um perrengue de grana, afinal viver da arte no Brasil é realmente para os fortes, é para quem tem a resistência no DNA. O convite foi tentador. Para entrar no programa, já seria uma grana alta. O programa fugia completamente do nosso plano de carreira. Como seria uma grana forte, a gente quase aceitou. Foi quase mesmo“, confessou.
Sobre a carreira de mais de 23 anos, Aline afirmou: “Minha arte é resistência. Resistir nesse caminho diz muito sobre meu dom, minha luta e meu caminho. Do início da carreira para cá, acumulo diversos sonhos. Alguns estou realizando. Fazer uma novela das 9 é um sonho. Fazer uma personagem com o peso e a magnitude da Zuleica é um sonho”.
“Na versão de 1990, a Zuleica era feita pela Rosamaria Murtinho, uma atriz branca. Todo este núcleo da segunda família do Tenório era branco“, observou. Por fim, ela exaltou a escolha do autor da novela: “O Bruno Luperi é um homem consciente e antirracista. Ele optou por trazer essa família preta para discutir questões que são mais do que urgentes“.