O álbum visual “Black is King”, novo projeto de Beyoncé, foi lançado na última semana (31) e tem dado o que falar. A ideia da cantora para o filme foi de exaltar a cultura negra ao recriar a história de “O Rei Leão”. Simba, por exemplo, é interpretado por uma criança negra que se perde no mundo, e acha em suas raízes africanas a força para crescer. As resenhas positivas foram muitas! Entretanto, algumas críticas ao trabalho da diva pop também apareceram.
Lilia Moritz Schwarcz, que é antropóloga e historiadora, professora da USP e da Universidade Princeton, publicou um texto no jornal Folha de São Paulo, afirmando que o projeto de Beyoncé “chegou em boa hora”, já que os Estados Unidos protestam intensamente pelos direitos dos negros, após o brutal assassinato de George Floyd. No entanto, passagens problemáticas do ensaio encontraram reações negativas e justas nas redes.
Segundo a professora, “causa estranheza que a cantora recorra a imagens tão estereotipadas e crie uma África caricata e perdida no tempo das savanas”. “Nesse contexto politizado e racializado do ‘Black Lives Matter’, e de movimentos como o ‘Decolonize This Place’, que não aceitam mais o sentido único e Ocidental da história, duvido que jovens se reconheçam no lado didático dessa história de retorno a um mundo encantado e glamorizado, com muito figurino de oncinha e leopardo, brilho e cristal”, escreveu.
Ainda na análise, Moritz pontuou que essa “África idílica combina com o ritmo e a genialidade da estrela do pop“. “Visto sob esse ângulo, o trabalho é uma exaltação, bem-vinda e sem pejas, de uma experiência secular que circulou por essa diáspora afro-atlântica e condicionou sua realidade. Mas o álbum decepciona também. Quem sabe seja hora de Beyoncé sair um pouco da sua sala de jantar e deixar a história começar outra vez, e em outro sentido”, declarou ela, que em 2006, chegou a assinar um manifesto contra as cotas raciais.
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Jornalista recebe críticas por sua publicação
Não demorou para que a resenha de Lilia, mulher branca, gerasse revolta do povo preto. Iza, uma das mais importantes artistas brasileiras da atualidade, usou seu Instagram para fazer uma crítica ao texto da antropóloga. A cantora repreendeu a chamada do artigo, que dizia: “Diva pop precisa entender que a luta antirracista não se faz só com pompa, artifício hollywoodiano, brilho e cristal”.
“Quem precisa entender sou eu. Eu preciso entender que privilégio é esse que te faz pensar que você tem alguma autoridade para ensinar uma mulher negra como ela deve ou não falar sobre o seu povo. Se eu fosse você (valeu Deus), estaria com vergonha agora. Melhore!”, disparou.
O ator e cantor Ícaro Silva, foi incisivo em seu comentário. “Você é uma grande, grande vergonha. Não somente para o Brasil e para o povo preto, mas para todos os povos aqui presentes. Não vejo por onde defender seu declarado racismo, sua arrogância branca elitista em se dar o direito não somente de reduzir uma obra prima ao nicho ‘antirracista’, mas em acreditar que tem conhecimento antropológico sobre África”, reiterou.
“Obviamente não tem, ou não teria reduzido a pele de um bicho sagrado à estampa que peruas de sua classe insistiram em apropriar em sua cafonice colonialista. Profunda vergonha, profundo constrangimento em ser contemporâneo dessa pessoa. Nos deixe em paz, nenhuma obra nossa estará sequer perto de sua reduzida compreensão”, enfureceu-se.
A jornalista, humorista e ativista Maíra Azevedo, mais conhecida por Tia Ma, também mandou seu recado. “O erro é uma mulher branca acreditar que pode dizer a uma mulher preta, como ela deve contar a história e narrar a sua ancestralidade. A branquitude acostumou a ter a negritude como objeto de estudo e segue crendo que pode nos dizer o que falar sobre nossas narrativas e trajetórias. Lilia é uma historiadora, pesquisa sobre escravidão, mas está longe de sentir na pele o que é ser uma mulher preta”, frisou.
“Enquanto todas as pessoas negras se emocionam, se reconhecem e se identificam, a branca aliada diz que Beyoncé deixa a desejar! É isso! No final, [somos] nós por nós e falando por nós! Como diz um provérbio africano: ‘enquanto os leões não contarem suas próprias histórias, os caçadores seguirão sendo vistos como heróis’. E aqui, quando a gente conta, dramatiza e sonoriza, querem apontar o roteiro! Parem! Estamos no comando das nossas narrativas!”, esbravejou.
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A apresentadora e colunista da Marie Claire, Stephanie Ribeiro, avisou que Lilia “desrespeitou as mulheres ao mandar Beyoncé ‘sair da sala de jantar'”. “Assumiu o pior lugar do que significa ser branca nessa sua análise. E se conhecesse o trabalho e equipe dela (Beyoncé), de maioria negra e africana, não tentaria ensinar a ela e todos que contribuíram com este trabalho, a serem negros. Não existe uma regra, tampouco se existisse, seria definida por brancos. A lógica de autenticidade racial está nítida em seu artigo. Você usa a classe para desclassificá-la”, afirmou.
Ainda segundo Ribeiro, a historiadora invalidou o trabalho de todos os envolvidos na produção. “Nas entrelinhas, você está dizendo que Beyoncé, sendo rica e famosa, não sabe da própria negritude. E ainda, indiretamente, deslegitima todos os negros e/ou africanos que assinam o trabalho. Da figurinista mulher negra de pele escura, aos artistas, diretores, e etc”, lamentou em seguida.
Em sua crítica, o autor Ale Santos disse que Lilia pouco entendia do “poder da cosmovisão e da ficção afrocentrada“. “Por isso, ela coloca a régua eurocêntrica em tudo e evoca um ‘senso de realidade’ que não cabe no imaginário negro pra discutir Beyoncé. É tentar diminuir aquele fogo que ela não controla e nunca irá”, avaliou.
E ainda deixou um aviso: “A imprensa tem que se ligar da nova realidade. No passado, quando seus colunistas falavam besteira, não existia um espaço para pessoas negras e periféricas questionarem. Hoje, nós temos voz pra criticar e isso tá assustando geral, deixa nomes famosos em choque. É só o começo”.
Lilia schwarcz não entende nada do poder da cosmovisão e da ficção afrocentrada por isso coloca a régua eurocêntrica em tudo e evoca um "senso de realidade" que não cabe no imaginário negro pra discutir Beyoncé. É tentar diminuir aquele fogo que ela não controla e nunca irá 🔥
— Ale Santos (@Savagefiction) August 3, 2020
A imprensa tem que se ligar da nova realidade. No passado quando seus colunistas falavam besteira não existia um espaço para pessoas negras e periféricas questionarem, hoje nós temos voz pra criticar e isso tá assustando geral, deixa nomes famosos em choque. É só o começo 🔥
— Ale Santos (@Savagefiction) August 3, 2020
A influenciadora Jude Paulla resolveu tirar sarro da situação, e apenas publicou uma imagem que mostra um senhor branco, representando Lilia, carregando a causa do vestido de Beyoncé. “Risos”, escreveu ela.
rsrsrsrs pic.twitter.com/SGK9IWGC5y
— jude (@judepaulla1) August 3, 2020
Pedido de desculpas
Ao saber da repercussão negativa, Schwarcz fez uma publicação na qual tentou se explicar, e pediu desculpas. “Agradeço a todos os comentários e sugestões. Sempre. Gostaria de esclarecer que gostei demais do trabalho de Beyoncé. Penso que faz parte da democracia discordar. Faz parte da democracia, inclusive, apresentar com respeito argumentos discordantes”, enfatizou.
A professora então culpou o título da matéria como possível causador de discórdias, e pediu que o texto na íntegra fosse lido. “Já escrevi artigo super elogioso à Beyoncé nesse mesmo jornal, o que só mostra meu respeito pela artista. E por respeitar, me permiti comentar um aspecto e não o vídeo todo. Agradeço demais a leitura completa do ensaio. Penso que o título também levou a má compreensão. Dito isso, sei que todo texto pode ter várias interpretações e me desculpo diante das pessoas que ofendi. Não foi minha intenção. Continuamos no diálogo que nos une por aqui”, finalizou.
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