Uma reportagem do The Intercept Brasil publicada nesta segunda-feira (20) expôs o caso de uma juíza de Santa Catarina que tentou induzir uma criança de 11 anos a desistir do aborto legal, após ser vítima de um estupro. Um trecho da audiência do caso foi divulgado, com falas que causaram controvérsia nas redes sociais. Atualmente, a menina está sendo mantida em um abrigo para evitar a retirada o feto.
O início do caso
Pouco antes do aniversário de 11 anos da menina, sua mãe estranhou os enjoos dela e o crescimento de sua barriga. A gravidez, então, foi confirmada através de um teste rápido de farmácia. Dois dias depois, em 4 de maio, a criança foi levada ao Hospital Universitário Professor Polydoro Ernani de São Thiago, ligado à UFSC, para fazer o procedimento de aborto – que é permitido pelo Código Penal em casos de violência sexual, sem necessidade de autorização judicial ou limitações quanto ao número de semanas. No entanto, a equipe médica local se recusou a realizar o abortamento, justificando que o HU só permitia abortos até as 20 semanas. Na época, a garota estava com 22 semanas e dois dias.
Já no dia 6 de maio, a promotora do Ministério Público catarinense Mirela Dutra Alberton ajuizou uma ação cautelar pedindo o acolhimento institucional da menina. No texto, ela disse que a garota deveria “permanecer até verificar-se que não se encontra mais em situação de risco [de violência sexual] e possa retornar para a família natural”. A princípio, a própria promotora reconheceu o risco de uma gravidez tão precoce: “Por óbvio, uma criança em tenra idade (10 anos) não possui estrutura biológica em estágio de formação apto para uma gestação”.
O caso chegou até a juíza Joana Ribeiro Zimmer, que autorizou a medida protetiva, mas comparou a proteção da saúde da menina à proteção do feto. “Situação que deve ser avaliada como forma não só de protegê-la, mas de proteger o bebê em gestação, se houver viabilidade de vida extrauterina”, escreveu ela. Com base em um laudo médico inicial do hospital emitido em 5 de maio, a magistrada afirmou: “Os riscos são inerentes à uma gestação nesta idade e não há, até o momento, risco de morte materna”. Com isso, a menina foi levada a um abrigo longe da família.
A audiência
Uma audiência judicial foi realizada no dia 9 de maio, quando a criança, sua família e sua advogada foram ouvidas pela juíza. Todos os familiares se comprometaram a tomar medidas para evitar novos abusos. Uma fonte anônima também divulgou trechos da audiência, mostrando a defesa das autoridades pela manutenção da gravidez e de uma antecipação do parto, apesar de mencionarem a possibilidade de um aborto legal. As imagens estão sob sigilo judicial, mas os rostos e vozes da menina e de sua mãe foram alterados para preservar suas identidades.
Na ocasião, a juíza e a promotora propuseram que a menina mantivesse a gravidez por por mais “uma ou duas semanas”. “Você suportaria ficar mais um pouquinho?”, questiona Zimmer. Ela e a promotora falam sobre aumentar a chance de sobrevida do feto. “A gente mantinha mais uma ou duas semanas apenas a tua barriga, porque, para ele ter a chance de sobreviver mais, ele precisa tomar os medicamentos para o pulmão se formar completamente”, afirma Alberton. “Em vez de deixar ele morrer – porque já é um bebê, já é uma criança –, em vez de a gente tirar da tua barriga e ver ele morrendo e agonizando, é isso que acontece, porque o Brasil não concorda com a eutanásia, o Brasil não tem, não vai dar medicamento para ele… Ele vai nascer chorando, não [inaudível] medicamento para ele morrer”, completa.
Ao falar sobre o aborto legal, Joana fez menção a uma norma técnica do Ministério da Saúde sobre agravos resultantes de violência sexual – utilizada como recomendação – que estabelece o prazo de 20 a 22 semanas para o abortamento. Então, a magistrada comparou um aborto após esse período a um homicídio. Para ela, isso “seria uma autorização para homicídio, como bem a dra. Mirela lembrou. Porque, no Código Penal, está tudo muito especificadamente o tipo penal”.
Em determinado momento, a juíza sugere não interromper a gravidez para que o bebê da criança seja entregue à adoção. “Qual é a expectativa que você tem em relação ao bebê? Você quer ver ele nascer?”, indaga ela. “Não”, diz a menina. “Você gosta de estudar?”, pergunta Ribeiro. “Gosto”, devolve a garotinha. “Você acha que a tua condição atrapalha o teu estudo?”, questiona a magistrada mais uma vez, ao que a pequena admite: “Sim”.
Como faltavam poucos dias para o aniversário de 11 anos da criança, a juíza perguntou: “Você tem algum pedido especial de aniversário? Se tiver, é só pedir. Quer escolher o nome do bebê?”. Mais uma vez, a vítima expressou sua intenção de não manter a gravidez e respondeu: “Não”. Mas a magistrada continuou e ainda fez referência ao estuprador. “Você acha que o pai do bebê concordaria pra entrega para adoção?”, quis saber ela. “Não sei”, disse a menina, em voz baixa.
A mãe da vítima, por sua vez, ficou aos prantos durante a audiência. “Hoje, há tecnologia para salvar o bebê. E a gente tem 30 mil casais que querem o bebê, que aceitam o bebê. Essa tristeza de hoje para a senhora e para a sua filha é a felicidade de um casal”, declarou Ribeiro. “É uma felicidade, porque não estão passando o que eu estou”, rebateu a mãe.
A mãe apenas suplicou que pudesse ficar com a filha ao ser questionada sobre qual seria a melhor solução para o caso. “Independente do que a senhora vai decidir, eu só queria fazer um último pedido. Deixa a minha filha dentro de casa comigo. Se ela tiver que passar um, dois meses, três meses [grávida], não sei quanto tempo com a criança… Mas deixa eu cuidar dela?”, pediu. “Ela não tem noção do que ela está passando, vocês fazem esse monte de pergunta, mas ela nem sabe o que responder”, ressaltou a mulher.
Assista ao vídeo abaixo:
Juíza responde sobre declarações
Procurada pela reportagem, a juíza Joana Ribeiro deu seu posicionamento através de um comunicado da assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça. Ela disse que “não se manifestará sobre trechos da referida audiência, que foram vazados de forma criminosa. Não só por se tratar de um caso que tramita em segredo de justiça, mas, sobretudo para garantir a devida proteção integral à criança”.
A nota ainda pontuou que “seria de extrema importância que esse caso continue a ser tratado pela instância adequada, ou seja, pela Justiça, com toda a responsabilidade e ética que a situação requer e com a devida proteção a todos os seus direitos [da menina]”.
Promotora se manifesta
A promotora Mirela Dutra Alberton falou sobre o caso e respondeu que o hospital “se recusou a realizar a interrupção da gravidez” e que, caso houvesse “uma situação concreta de risco”, seria “obrigação” dos médicos agirem, alegando que a vítima não correria risco. “Por conta dessa recusa da rede hospitalar, inclusive com documentos igualmente médicos encaminhados à 2ª Promotoria de Justiça de Tijucas, no momento da propositura da ação era nítido que a infante não estaria sujeita a qualquer situação de risco concreto, o que, inclusive, tem se confirmado em seu acompanhamento”, declarou ela.
Alberton também comentou sobre quando disse “em vez de a gente tirar da tua barriga e ver ele morrendo e agonizando”, ao falar da possibilidade do aborto legal. De acordo com a promotora, a frase foi dita “no sentido de esclarecimento sobre as consequências do procedimento de interrupção da gravidez, já que o avançado estado da gravidez viabilizava a vida extrauterina”. Ela também ressaltou que não sabia, até então, que o feto já sairia do útero sem batimentos cardíacos caso o procedimento do aborto fosse realizado.
Riscos da gestação
Segundo laudos anexados no processo e outros depoimentos, a criança corre risco a cada semana que é obrigada a seguir com a gestação. Hoje, ela já caminha para a 29ª semana das 40 que uma gravidez costuma ter em média. Outros médicos do mesmo hospital avaliaram que há, sim, risco de morte para a menina, ao contrário do que o primeiro laudo havia dito. Em 10 de maio, a médica Maristela Muller Sens, também do HU, pontuou que a vítima corre riscos como anemia grave, pré-eclâmpsia, tem uma maior chance de hemorragias e pode sofrer até uma histerectomia, uma consequência irreversível da retirada do útero.
Os médicos também questionaram a proposta de um parto antecipado, como fez a médica Emarise Medeiros Paes de Andrade numa audiência de 17 de maio. “Levar algumas semanas adiante, para nós não é uma coisa que a gente pode dizer: ‘vai ser bom para os dois’. Porque, assim, [para] uma criança [de] até 27, 28 semanas de gestação, o risco é 50% de mortalidade”, atestou ela, ressaltando como a criança e o feto correriam riscos. ”É muito menos danoso que fosse um abortamento nessa fase do que um parto [normal] ou cesárea para a idade dessa menina”, pontuou.
Emarise ainda observou que mãe e filha “tiveram um convencimento emocional de que deveriam levar a gravidez adiante”, e deixou claro como uma menina de 10 anos ainda não tem maturidade para tomar tais decisões. “O que eu posso dizer, tecnicamente, é que uma criança de 10 anos é uma criança de 10 anos. É uma pessoa que tem imaturidade cognitiva, biológica e emocional para tomar uma decisão. É uma criança que tem biologicamente danos para ela poder levar uma gravidez”, argumentou.
Desdobramentos do caso
Apesar de tudo isso, a autorização do parto antecipado, pedido pela promotora Alberton em 12 de maio, foi mantida para para “salvaguarda da vida da criança e do concepto, a critério da equipe médica responsável, encaminhando-se o concepto imediatamente aos cuidados médicos”. No mesmo dia, o juiz Mônani Menine Pereira, do Tribunal do Júri de Florianópolis, autorizou o aborto legal. Ele abordou como negar isso traria “sofrimento psicológico intenso” a todos os envolvidos e reconheceu os riscos que a gravidez traria à menina.
Entretanto, o próprio magistrado cassou o alvará no dia seguinte. A decisão veio após uma petição do Ministério Público, que alegou que o caso já vinha sendo acompanhado pelas varas da Infância e pela Vara Criminal da Comarca de Tijucas, “com adoção de medidas judiciais em favor da infante e do nascituro antes da propositura desta ação”. Então, a Vara Criminal de Tijucas autorizou em 13 de maio uma cesariana antecipada para “salvaguardar a sua vida [da menina] e a do concepto”.
A desembargadora Cláudia Lambert de Faria também negou um requerimento da advogada da família de que a menina fosse liberada para fazer o aborto legal. De acordo com ela, embora houvesse o “risco geral de uma gravidez em tenra idade”, a menina não se encontrava em “risco imediato”. No início de junho, a advogada Angela Marcondes, da Comissão de Direito da Criança e do Adolescente da OAB de Santa Catarina, entrou com um pedido de que a criança deixasse o abrigo.
No dia 3 de junho, uma nova decisão autorizou que a menina ficasse junto de sua mãe em um abrigo para vítimas de violência. No entanto, só na última sexta-feira, 17 de junho, elas conseguiram ficar juntas.