Marcius Melhem foi violento e tentou agarrar mulheres à força, diz defesa de atrizes: “Constrangimento sistemático e insistente”; Humorista se manifesta

Em dezembro do ano passado, denúncias de assédio moral feitas por funcionárias da Globo contra Marcius Melhem vieram à tona e deixaram o público chocado. Porém, nenhum detalhe sobre esses relatos e o processo iniciado pela emissora tinha sido divulgado. No início deste mês, a jornalista Mônica Bergamo, da Folha de São Paulo, teve a oportunidade de conversar com a advogada que representa as denunciantes e deu detalhes sobre a investigação, que também incluiu queixas de assédio sexual.

Na matéria divulgada neste sábado (24), a advogada criminalista Mayra Cotta explicou que há seis vítimas de assédio sexual, outras de assédio moral, seis testemunhas e um grupo de apoio com mais de 30 pessoas. “As vítimas e as testemunhas que eu represento depuseram no processo de compliance [aberto pela TV Globo para apurar denúncias contra o ex-diretor]. O processo foi encerrado e elas estavam sem saber muito bem como se organizar para que essa história tivesse um desfecho que reconhecesse tudo o que elas passaram e toda a gravidade do comportamento que o Marcius Melhem teve enquanto ele foi chefe”, explicou a profissional.

Mônica Bergamo também conversou com as vítimas, porém nenhuma delas autorizou que os relatos fossem divulgados. Mayra explicou o porquê do silêncio: “Todas elas denunciaram os fatos internamente [na TV Globo]. Tomaram as medidas cabíveis. Mas é muito difícil você se expor publicamente como uma vítima. Sabemos como mulheres que denunciam homens por assédio sexual às vezes são tratadas no tipo de sociedade em que a gente vive. Nenhuma mulher quer ser definida para sempre como uma vítima de assédio sexual. Por isso [surgiu] a ideia de eu falar em nome desse grupo. É justamente para não ‘fulanizar’. Não tornar isso a história de uma mulher. São várias as que foram vítimas”.

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Em um dos trechos mais chocantes da entrevista, a advogada detalha a conduta “muito violenta”de Marcius Melhem, que teria abusado de sua posição de poder dentro da emissora. “Houve um comportamento recorrente, de trancar mulheres em espaços e as tentar agarrar, contra a vontade delas. De insistir e ficar mandando mensagem inclusive de teor sexual para mulheres que ele decidia se iam ser escaladas ou não para trabalhar, se ia ter cena ou não para elas [nos programas de humor]. De prejudicar as carreiras de mulheres que o rejeitaram. De ficar obcecado, perseguindo mesmo. Foi um constrangimento sistemático e insistente, muito recorrente”, relatou.

Apesar das denúncias virem à tona em dezembro de 2019, o contrato de Marcius Melhem com a Globo só foi encerrado em agosto de 2020. Foto: Divulgação/Globo

A situação em que algumas mulheres foram colocadas impressiona. “Ele isolava as atrizes, tinha o poder de não as deixar ir para outros lugares [na emissora], fazer outras coisas. E criava um ambiente de trabalho tóxico. As pessoas se sentiam presas, sem conseguir se livrar daquilo. Ele usava situações de trabalho para as tentar agarrar à força, inclusive usando violência”, explicou Cotta.

Para entender o caso com mais precisão, Bergamo chegou a questionar para a magistrada se tinha alguma chance das atitudes terem sido um flerte de Melhem, e que eles foram mal interpretados. “Foram casos de assédio sexual mesmo. De mulheres falando não, não quero, me solta, não vou beijar, não vou ficar com você. E ele tentando, agarrando. Não tem zona cinzenta, isso é violência. E aí tem algo muito sério: ele era chefe delas. Ele tinha uma posição de poder”, frisou Mayra.

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A advogada explicou que, mesmo nos casos anteriores ao ano de 2018, quando Melhem era redator no humorístico “Zorra Total”, as denúncias já se enquadravam em assédio e abuso de poder. “Mesmo não sendo chefe formalmente, tinha posição hierárquica superior. Era capaz de definir quem trabalhava e quem não trabalhava. Tinha o poder de colocar uma atriz na geladeira, por exemplo. Ou de escrever cenas em que contracenava beijando, agarrando a atriz. De usar esse poder de redator, e depois de chefe, para trazer as mulheres para a sua esfera de poder, e com isso as constranger”, avaliou.

A profissional relatou que houveram demissões de mulheres que resistiram aos desmandos do ator. “É muito difícil para uma funcionária falar não para a pessoa que a pode demitir no dia seguinte —como ele fez com algumas das que resistiram, que disseram não a ele. Não é uma escolha legítima dizer ‘ou você aceita ficar comigo ou eu vou prejudicar a sua carreira’. Não tem consentimento livre, ainda que as mulheres escolham entrar nessa relação”, declarou.

Um dos últimos trabalhos do ator no canal foi na nova versão de “A Escolinha do Professor Raimundo”. Foto: Estevam Avellar/Globo

Mayra admitiu que uma das coisas que mais chamaram a atenção foi o padrão praticamente idêntico dos abusos. “Uma mulher depois da outra, eu escutava a mesma forma de ação dele —tentar agarrar e depois falar que foi brincadeira”, contou. Por isso, o rastro de casos vai muito além das pessoas que tiveram coragem de denunciá-lo. “As pessoas têm medo, muito medo. Mesmo ele não estando mais lá, elas têm medo de ele se vingar, de continuar sabotando as carreira delas. Várias das seis [vítimas] com quem conversei dizem isso, que outras pessoas depois ligaram para elas e falaram ‘eu também fui vítima, comigo também aconteceu’. Eram pessoas que tinham preferido deixar isso para trás”, concluiu.

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Esse medo, inclusive, foi um dos fatores que afetaram na “demora” para as mulheres formalizarem as denúncias. “Alguns episódios são traumáticos. A vítima precisa de um tempo para ela mesma conseguir revisitar aquilo. Depois que você passa por uma violência, é normal não querer mais pensar naquilo, querer seguir em frente. Até que você percebe que é impossível seguir em frente. […] E aí esse silêncio foi rompido. Na hora em que ele é rompido, ninguém mais consegue segurar e precisa falar, denunciar. Você desenterra os traumas”. 

Bergamo recordou que muitas pessoas especularam que a responsável em dar o “pontapé” nas denúncias teria sido a atriz Dani Calabresa, o que foi desmentido pela advogada. “Não vou falar nomes porque não foi uma mulher que liderou as demais contra ele. Uma fez apenas o primeiro furinho na barragem, que estourou”, disse.

Mayra finalizou a entrevista detalhando por qual motivo foi contratada pelas vítimas. “Elas me procuraram porque publicamente a única versão que se tem sobre essa história é a dele. Nunca houve um reconhecimento do que aconteceu com as vítimas. E esse reconhecimento é muito importante. Um assédio sexual deixa uma terra arrasada. Tudo o que elas querem é poder trabalhar sem serem assediadas. É fazer uma cena em que a única preocupação delas seja atuar bem, e não se vão ser agarradas à força pela pessoa que escreveu o papel para elas. O que elas querem é o reconhecimento de tudo o que passaram, dos graves acontecimentos”, encerrou.

Pronunciamento do ator

Com a repercussão da entrevista de Mônica Bergamo, Marcius Melhem usou sua conta no Twitter para se pronunciar a respeito das acusações. “Como escrever uma nota pra comentar acusações dessa gravidade? Culpados e inocentes dizem a mesma coisa. ‘Sou inocente’. ‘Vou provar na Justiça’. Por isso qualquer coisa que eu diga pode soar falsa de cara. Mas preciso falar, e com o tempo, mostrar minha sinceridade no que vou dizer aqui. Estou disposto a reconhecer meus erros, pedir desculpas e, se possível, reparar pessoas que eu tenha de qualquer forma magoado. Quero enfrentar isso com verdade e humanidade e me expor se for preciso”, garantiu.

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O artista alegou que fez parte do movimento de atores “que lutaram contra o preconceito”, e por isso, apoia a luta das mulheres. “Fazer jus a todos esses anos em que pautas como as do feminismo foram abraçadas pelo humor transformador em que eu acredito. Fiz parte de um grupo de homens e mulheres que se orgulha de usar o humor como um instrumento contra o preconceito. Mas mesmo abraçando profissionalmente a causa feminista, ainda combato o machismo dentro de mim, erro, posso ter relações que magoem”, admitiu.

Marcius também rejeitou ter culpa nas acusações feitas. “Tento melhorar e aprender. E queria muito falar sobre isso. Mas diante de acusações tão graves que de forma alguma cometi, o que eu posso fazer? Negar. Eu coloco à disposição toda minha comunicação que tenho arquivada, com qualquer pessoa que tenha trabalhado ou se relacionado comigo nesses anos. E peço que ouçam as pessoas que trabalharam comigo que acompanharam muitas situações de perto e que podem falar bastante sobre isso tudo. Peço por favor que apurem a verdade e não apoiem mentiras”, pediu, referindo-se aos relatos divulgados hoje.

O ator chegou a lamentar que sua viagem para o exterior, com o intuito de cuidar da saúde de uma de suas filhas, tenha sido encarada como “fuga”, após o escândalo vir à tona. “Qualquer pessoa que me conheça, que tenha convivido minimamente comigo sabe que é impossível eu praticar alguma violência, especialmente contra as mulheres. Jamais seria capaz de emparedar alguém a força”, defendeu-se. O artista também falou sobre o processo de investigação feito internamente dentro da Globo.

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“Até hoje eu fiquei calado porque as acusações não apareceram aqui fora. No compliance da rede Globo tudo foi apurado e investigado rigorosamente. Saí pela porta da frente da emissora que trabalhei por 17 anos. Sei que num caso desses, ainda mais no momento que vivemos, de tanto ódio, serei culpado até provar o contrário. Então quero que tudo seja colocado às claras, expor a minha inocência e os meus erros. Quero poder pedir desculpas e cobrar responsabilidades. Vou em busca da verdade”, compartilhou.

Globo comenta sobre investigações

Em agosto deste ano, funcionários da rede Globo reclamaram da postura da empresa com todo o caso de Marcius Melhem, principalmente no comunicado sobre o encerramento do contrato com o artista. Desta vez, o canal enviou uma nota para a Folha de São Paulo com seu posicionamento oficial. “A Globo não comenta assuntos da área de compliance, mas reafirma que todo relato de assédio, moral ou sexual, é apurado criteriosamente assim que a empresa toma conhecimento. A Globo não tolera comportamentos abusivos em suas equipes e, neste sentido, mantém um canal aberto para denúncias de violação às regras do Código de Ética do Grupo Globo”, começou o texto.

“Por esse código, assumimos o compromisso de sigilo do processo, assim como o de investigar, não fazer comentários sobre as apurações e tomar as medidas cabíveis, que podem ir de uma advertência até o desligamento do colaborador. Mesmo nas hipóteses de desligamento, as razões de compliance não são tornadas públicas”, garantiu.

Marcius Melhem foi funcionário da Globo por 17 anos. Foto: João Cotta/Globo

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Para quem possa ter dúvidas do compromisso com a investigação, a emissora reforçou que o processo leva em consideração todos os detalhes possíveis. “Somos muito criteriosos para que os estilos de gestão estejam adequados aos comportamentos e posturas que a Globo quer incentivar e para que as medidas adotadas estejam de acordo com o que foi apurado. Não foi diferente nesse caso”, afirmou.

“Isso não quer dizer que os processos de compliance sejam estáticos. Ao contrário. Eles evoluem constantemente para acompanhar as discussões da sociedade. As práticas e as avaliações são revistas o tempo inteiro, assim como são propostas e acolhidas sugestões de melhoria nos mecanismos de comunicação interna. A própria sociedade está se transformando e a empresa acompanha esse processo”, finalizou.

Relembre o caso

Em  março deste ano, um comunicado oficial para a imprensa, a Rede Globo anunciou a saída de Marcius Melhem da liderança dos projetos de humor da emissora. Na nota, a Globo afirmou que o humorista deixou a liderança por “motivos pessoais” e revelou ainda que ele solicitou uma licença das funções de roteirista e ator por um período de quatro meses. A decisão veio pouco mais de dois meses após a coluna de Leo Dias reportar que Marcius teria sido denunciado por assédio moral por diversas atrizes experientes da área.

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Segundo o jornalista, os nomes de Dani Calabresa e Maria Clara Gueiros apareciam entre as estrelas que fizeram as acusações. No entanto, após a notícia sair, Gueiros usou as redes sociais para falar sobre o assunto. “Esclarecendo: Eu não fui vítima de assédio moral e não fiz denúncia”, escreveu. Ao hugogloss.com na época, Dani Calabresa disse que não se pronunciaria, mas confirmou que, de fato, estava em contato com a direção da emissora.

 

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Assédio moral no ambiente de trabalho configura qualquer tipo de situação humilhante, constrangedora, repetitiva e prolongada — principalmente em hierarquias. Apesar da denúncia ter partido de mulheres, ela também teria ganhado reforço entre os homens do humor. Marcelo Adnet teria testemunhado a favor das reclamantes, de acordo com a nota de Dias.

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Em entrevista à Folha de São Paulo no início do ano, entretanto, Adnet negou ter presenciado qualquer situação do gênero. “Até saiu que eu testemunhei e me coloquei do lado delas, mas isso não aconteceu. Também não quis desmentir oficialmente para não parecer que eu não estava do lado delas. É muito simples. O Marcius é meu amigo, a Dani Calabresa também, todos se falam e acho leviano falar porque não presenciei”, declarou.

Na época, o departamento de Comunicação da TV Globo afirmou: “Todo relato de assédio, moral ou sexual, na Globo é apurado criteriosamente assim que tomamos conhecimento. A Globo reafirma que não aceita qualquer tipo de assédio e, neste sentido, mantém um canal aberto para denúncias de violação às regras do Código de Ética do Grupo Globo”.