Nesta quarta-feira (18), o jornalista Leonardo Sakamoto, do UOL, expôs o caso de um homem, identificado como Itamar da Costa, que foi resgatado em uma fazenda de gado na cidade de Formosa, em Goiás, após passar mais de oito anos trabalhando em condições análogas à escravidão. Durante uma operação de fiscalização iniciada no último dia 11, as autoridades descobriram que o trabalhador vivia com a esposa e cinco filhos dormindo entre escorpiões e cobras, sem água e luz, com pouca comida e sob a poeira da mineração de calcário, localizada perto de seu alojamento.
Em depoimento impressionante e comovente para o jornalista, a esposa de Itamar, Marilene da Costa, detalhou as dificuldades que a família enfrentou, principalmente para sobreviver aos animais peçonhentos. “Escorpião era demais, tinha muito. Um me picou e fiquei seis meses com a perna dormente. Já acordei com cobra no pescoço. Tinha coral, papa-pinto… Se não forrasse o chão e tapasse os buracos da casa todos os dias, os escorpiões picariam meus meninos. Dormia todo mundo no mesmo lugar. Assim eu ficava de olho nos bichos”, contou.
O saneamento inexistente do local era a realidade da família, que fazia suas necessidades fisiológicas no mato e bebia água salobra – de aparência turva e com mais sais dissolvidos que a água doce – encontrada em um poço. “Fiquei oito anos sofrendo que nem cachorro. Só no finalzinho, vieram o Conselho Tutelar e a Assistência Social. E, com isso, chegaram água e luz”, lembrou Marilene. A denúncia sobre as condições degradantes em que a família Costa vivia foi levada ao conhecimento das autoridades por meio de um Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas).
De acordo com a publicação, a casa da família tinha espaço apenas para uma pessoa “viver”, e ficava a menos de 100 metros de uma empresa de mineração, vizinha à fazenda, e a 200 metros do canteiro de extração de calcário. Com isso, além do barulho diário, eles tinham que lidar com uma grande quantidade de pó, que cobria a comida, roupas e até mesmo os membros da família. “A quantidade de pó era impressionante”, afirmou a auditora fiscal Andréia Donin, coordenadora da operação. A filha de 13 anos do casal tem bronquite asmática e sofria com a poeira intensa. Os outros filhos têm 16, 8, 7 e 4 anos de idade.
“Toda hora você tinha que limpar a casa e ficar com pano no nariz porque era pó demais. Eu tô com caroço no pescoço, perdendo a voz. Fui ao médico e ele disse que isso foi causado pela poeira. Tenho que ir pra Goiânia para operar, mas quem vai ficar com as crianças?”, lamentou Marilene. Segundo Sakamoto, todos vão passar por uma série de exames para verificar o estado de saúde, e o que a exposição contínua ao pó pode ter provocado.
Andréia Donin também relatou que ao chegar na casa, ela e seus colegas não puderam deixar de notar que a carne que serviria de alimento da família naquele dia estava secando no sol e coberta com o pó branco. A auditora relatou que, mesmo trabalhando na fazenda de gado, a família conseguiu aquela peça por uma doação externa.
Apesar de já ter que lidar com as consequências desse ambiente literalmente tóxico, Marilene da Costa desabafou que o sofrimento dos filhos foi a pior parte de tudo. “Tenho dois filhos que nem sabem o que é uma televisão. Olhava para eles e chorava muito. No tempo da chuva, a gente tinha que ficar enrolado num canto porque a ‘goteiragem’ era demais. Muita muriçoca, muito inseto. O fogão de lenha era dentro, tinha fumaça demais. Pó da firma [de mineração] e a fumaça do fogão… Sempre pedíamos uma casa melhor, e não faziam nada. Se o senhor (Sakamoto) visse a casa, ia ficar besta. Eu mandava meus filhos pra escola com roupa de goteira”, contou.
O procurador do trabalho Tiago Cabral, que acompanhou a fiscalização, revelou que tem notado nos últimos tempos uma piora considerável nas condições que são oferecidas aos trabalhadores. “Eles não conhecem seus direitos, são vítimas fáceis do trabalho escravo. O pai da família havia sido vítima de trabalho infantil. É a receita da superexploração. O empregador sabendo dessa situação colocou o trabalhador próximo de um local com extração mineral, aspergindo poeira sílica”, disse. A operação apurou também o trabalho de outro funcionário que morava com sua família na fazenda, mas em uma casa com boas condições e longe do pó da mineradora. Ele não estava em condição de escravidão.
Indenização
Por meio de seu advogado, Ítalo Xavier, o proprietário da fazenda Muzungo, Meroveu José Caixeta, disse que não tinha tido acesso integral aos autos do procedimento de inspeção. “Ele colaborou com os trabalhos da fiscalização, firmando Termo de Ajuste de Conduta com o Ministério Público do Trabalho, para atender todas as exigências que entenderam pertinentes”, escreveu na nota.
O valor pago a Itamar era de R$ 50 por diária de serviço, sem carteira de trabalho ou contrato registrado – mesmo com o longo período em que trabalhava na fazenda. Segundo a fiscalização, havia um acordo fraudulento de quitação de verbas trabalhistas, que foi desprezado para o cálculo das verbas rescisórias e direitos devidos. O trabalhador recebeu então o valor de R$ 24.921,84, e terá direito a três meses de seguro-desemprego.
Ainda, o Ministério Público do Trabalho e a Defensoria Pública da União acordaram uma indenização por danos morais que garantirá uma casa no valor de, pelo menos, R$ 100 mil. A residência deve ser comprada ou construída no município em um prazo de seis meses. “Se não entregarem em seis meses, o acordo estipula uma multa diária de R$ 1 mil até a entrega do bem com o valor revertido ao trabalhador”, explicou Tiago Cabral. Também como forma de compensação, a propriedade ficará no nome dos cinco filhos do casal. “Como o trabalhador muda com a família, a família sofre com a degradação e a negação dos direitos básicos, como uma moradia com a mínima condição de habitabilidade”, finalizou o procurador do trabalho.
IMPORTANTE: De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea no Brasil: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).