Os gêmeos Arthur e Bernardo, de 4 anos, nasceram unidos pela cabeça, compartilhando um pedaço do cérebro e a principal veia que leva o sangue de volta ao coração. Após nove cirurgias, foram separados. Ao “Fantástico” deste domingo (31), na Globo, os pais Adriely e Antônio contaram a história deste caso emocionante na medicina, que foi tratado através do SUS, no Rio de Janeiro.
O casal, de Boa Vista, em Roraima, já tinha duas filhas quando a mulher engravidou pela terceira vez. E no primeiro ultrassom, veio a notícia. “Eles falaram que era uma coisa estranha. Não eram exatamente duas crianças perfeitas. Uma cabeça com dois corpos”, lembrou o pai. Com seis meses de gestação, Adriely começou a se sentir mal e acabou transferida para o Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira, no Rio de Janeiro. No hospital, ligado à Fiocruz, Bernardo e Arthur nasceram unidos pelo crânio e pelo cérebro.
A incidência é de um caso para cada 2,5 milhões de nascidos vivos. Com oito meses de idade, os irmãos chegaram ao Instituto Estadual do Cérebro Paulo Niemeyer. Um médico estrangeiro contraindicou o procedimento de separação. “Esses gêmeos se enquadraram na classificação mais grave, mais difícil e com maior risco de morte para os dois”, explicou o neurocirurgião brasileiro Gabriel Mufarrej, que mais tarde viria a operá-los. “Nesse dia, eu fiquei tão desesperada, porque eu não aceitava o diagnóstico”, relatou Adriely.
“Eu falei para ela, ‘Adriely, talvez a gente seja capaz de separar essas crianças’. Eu apreendi uma coisa, quando você tem 1% de chance, você tem 99% de fé”, detalhou Mufarrej, que não se opôs ao procedimento. Em um ano de vida, completado em setembro de 2019, Arthur e Bernardo não conheciam outro ambiente senão o hospitalar. Os gêmeos dividiam cerca de 15% do cérebro, além de uma veia grande e muito importante que conduzia o sangue de retorno aos corações dos dois. “Foi uma grande dificuldade. Como a gente vai separar os dois, se eles têm uma veia única de drenagem? Que é vital para os dois”, pontuou Gabriel.
Irmão gêmeos nasceram unidos pela cabeça e dividiram 15% de cérebro e importante veia que conduzia o sangue de retorno aos corações. Entenda cirurgia e técnica que é um triunfo da medicina: https://t.co/HwJ1XueTk4 #Fantástico pic.twitter.com/SezbrF2ByD
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Contrariando estatísticas, o neurocirurgião marcou a primeira operação: “Eu batizei a primeira cirurgia de cirurgia do medo, do desconhecido. Essa tinha que encorajar a gente de seguir com as outras”. Os procedimentos seguintes foram acontecendo com intervalos de três a quatro meses para desconectar, aos poucos, a veia do cérebro de um dos irmãos. Assim, o cérebro teria tempo de recompor os vasos do seu sistema circulatório. O médico destacou que os cérebros de crianças se regeneram muito rápido.
“A cada cirurgia era um alívio. A gente ia vendo que estava dando certo”, contou a mãe. “Mas, mesmo assim, com o coração na mão. A gente não sabia o que iria acontecer”, completou o pai. Foram mais de três anos de internação, com diversas ressonâncias magnéticas e tomografias nos gêmeos para que a equipe médica conseguisse entender essa estrutura cerebral tão diferente. Para auxiliar nos exames de imagem, os neurologistas decidiram fazer modelos cerebrais em 3D, e essas réplicas foram fundamentais durante as cirurgias.
“Várias vezes, durante as cirurgias, eu me perdia. A gente tinha que parar, sair de campo, para um auxiliar me mostrar [os modelos em 3D] e me ajudar a me localizar”, detalhou Gabriel. A médica pediatra Fernanda Fialho frisou os desafios do caso após as cirurgias. “A gente queria que eles aprendessem a andar, a desenvolver a linguagem. Mas, eles estavam no hospital e os instintos são precários. E, então, a gente colocava eles no chão, cortou o cabelo deles, fez festa de aniversário, ensinou eles a falar… A gente se sente parte da família”, declarou a médica.
Cada vez que Arthur e Bernardo eram operados, a situação ficava mais complexa. “Havia risco de morte em potencial em todas as cirurgias”, evidenciou Mufarrej. Depois de sete cirurgias, o neurocirurgião decidiu buscar ajuda para a separação total e recorreu ao médico Owasi Jeelani, de Londres. Atualmente, o britânico é o profissional com mais experiência em separação de craniópagos pelo mundo. “Esse caso em particular era desafiador porque era o par de gêmeos mais velho que a gente separaria”, disse o inglês.
Após oito meses de encontros virtuais, Jeelani veio ao Brasil para as duas últimas e mais importantes operações. “A gente chegou a fazer três simulações com toda a equipe médica para ter certeza do que faríamos no dia”, afirmou a pediatra. Os médicos foram divididos em dois grupos: para cuidar de Bernardo, os profissionais formaram a equipe vermelha. E para o Arthur, a equipe era azul.
“A cirurgia começou às seis horas da manhã e demorou treze horas, terminou de noite. As crianças ficaram mantidas em coma induzido, sedadas e na UTI. Nós fizemos a separação de um lado, ainda faltava o outro”, contou Mufarrej sobre a oitava cirurgia. No dia 9 de junho, ocorreu a nona operação, que durou 23 horas, cercada de muita apreensão. “Foi muito difícil. Eu me perguntava se a gente iria conseguir. Em um momento, teve um sangramento enorme, e os anestesistas ficaram em pânico. Depois, nós conseguimos controlar”, detalhou o neurocirurgião.
Os irmãos saíram do centro cirúrgico separados. “Ninguém conseguia falar nada. O silêncio tomou conta. Era muita emoção”, confessou Gabriel. A cena dos médicos saindo da sala foi tomada por felicidade. “Eu não estou acreditando que meus filhos estão separados”, disse Adriely, aos prantos. “Eu gritava de alegria”, completou ela.
Arthur e Bernardo seguem em recuperação. “Eu acredito que eles vão ter algum grau de comprometimento. Algum atraso cognitivo e disfunção motora. Mas, assim, eles têm um futuro que ninguém esperava que eles fossem ter”, assumiu o cirurgião. “Eles já passaram por tanta coisa, já sofreram tanto. Eles são muito guerreiros. Nosso coração é só gratidão”, afirmou a mãe dos gêmeos.
As cirurgias no Instituto Estadual do Cérebro foram todas custeadas pelo SUS. “Elas são muito caras. São milhões envolvidos. E o SUS foi parceiro da gente”, declarou Gabriel. O hospital foi convidado a ser um parceiro da Fundação Gemini Untwined, criada pelo doutor Owase Jeelani. A equipe do médico Gabriel Mufarrej será referência para futuras cirurgias de separação de gêmeos unidos pela cabeça na América Latina.
Em agosto, os gêmeos completarão 4 anos de vida. “É o primeiro aniversário que eles vão se ver rosto a rosto, e vão poder se tocar”, pontuou o médico. “O maior sonho é ver eles recuperados, com saúde e até com uma vida social como as outras crianças. Poder estudar, poder jogar bola”, destacou o pai. “Sentir o sol, o vento. Eles estão internados desde que nasceram. Agora é só felicidade”, comemorou a mãe. Assista na íntegra:
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